Salmos

AT — SALMOS

VIDE: SALTÉRIO

Excertos da introdução de André Chouraqui a sua tradução dos Salmos, “Louvores”, Imago, 1998

A exegese hebraica nos oferece talvez a chave do plano que inspirou a composição do Saltério, quando sugere que a doutrina dos cinco livros dos Salmos é a mesma que a dos cinco livros de Moshè — o Pentateuco — dos quais são o comentário sinfônico. Um grande rigor parece ter presidido à classificação dos Salmos no interior da compilação, tal como a conhecemos hoje.

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Desde o século XI, este livro foi traduzido cerca de duas mil vezes em francês. Esse número é eloquente.

Tudo foi dito do problema da tradução, que é, como Paul Valéry bem percebeu, reconstituir o mais de perto possível o efeito de uma certa causa — aqui um texto em língua hebraica — por meio de uma outra causa — um texto em língua francesa. Essa dupla e necessária fidelidade parece aqui encurralar o tradutor no impossível.

Ele deve transpor, para uma língua implacavelmente analítica, cujo gênio é a clareza, a medida, a precisão, um texto em que a aliança íntima do som e do sentido se exprime em ritmos e ressonâncias da visão, mais do que em ideias; se estas aparecem, elas se referem a uma contemplação do real que, a bem dizer, escapa às medidas comuns do discurso. O símbolo, ele próprio alusivo, capta no coração da realidade a imagem exata que nos comove, moldada nos harmônicos todo-poderosos do verbo semítico: ele é número antes de ser forma.

A arte parece se tornar o instrumento de uma iniciação ao real, que ela atinge mais pela mediação da visão que do discurso; sua força é permitir a soltura da voz e a liberação do canto; a convenção da linguagem encontra sua determinação própria no chamejar de cada uma das letras do verbo e sua finalidade na salvação do homem.

E, de um diamante como esse, o tradutor só pode transmitir uma opaca poeira; não importa o partido que tome, seu empreendimento o condena a sacrificar o essencial: ele já prejudicou o canto ao arrancá-lo de sua língua.

Talvez reste um caminho possível, preparado pela explosão das estruturas clássicas da língua francesa nas últimas décadas. Neste país, onde nenhuma tradução da Bíblia conseguiu ainda se impor, os tradutores que aceitarem a aposta, o esforço e o risco de tal empreendimento deverão se orientar para a criação de uma linguagem nova que permita — como foi o caso da incomparável versão dos Setenta, da comovente Vulgata e da Authorized Version — pressentir as profundezas de vida que fazem da Bíblia o livro de YHWH Adonai Elohims.

Dois milênios e vários séculos nos separam dos autores dos Salmos; eles certamente não reconheceriam o mundo em que vivemos: nós, porém, não deixamos ainda de nos reconhecer em seus cantos, o tempo não desgastou suas imagens, e sua mensagem não cessa de ser atual. Sua exigência de justiça e de universalidade, sua visão da ordem criadora e do homem pacificado exprimirão eternamente as mais gritantes necessidades de uma humanidade que continua ainda a degustar a embriaguez cega e mortífera da taça da violência.

De século em século, este livro suscita e alimenta a esperança de alguns homens unidos por uma extrema intuição das realidades da vida, e que sabem a verdadeira presença do homem na ordem real do mundo, todos aqueles que escalaram ou que escalam as áridas elevações das fecundidades criadoras; todos aqueles que ouvem e seguem essa voz de além do século, para que advenha o cumprimento da promessa de justiça, mais urgente, por certo, num tempo em que o furor da besta abre, sob nossos olhos cegos ou cúmplices, as perspectivas claras de um suicídio planetário.

O livro está aí e testemunha contra nós sobre o rochedo da eternidade, onde seu verbo nos convoca.

É preciso tê-lo cantado, talvez, na noite do exílio, sobre os ritmos antigos do Oriente, para compreender todas as suas forças libertadoras, para saber o quanto ele pode assumir o homem e elevá-lo. Noite do Ocidente, de dilacerações dos grandes cuidados, noite atenta e silenciosa do Oriente, noite dos desertos da Judeia, ardendo numa pura chama que dança ao crepúsculo, noites do mundo e noites do espírito: a alma se entrega à salmodia, identifica-se ao homem único que geme e que sofre, que é assaltado pela iniquidade e que sangra, que é mortificado e que não cessa de cantar na extraordinária certeza que o inunda. A alma é arrebatada pelo encantamento dos ritmos hebraicos; lentamente a alma do salmista torna-se nossa alma, seu combate nosso combate, sua dor nossa dor, sua agonia nossa agonia, a de todos os homens que, nos séculos dos séculos, deram sua vida nessa viva chama. Lentamente, nossa alma se compenetra e se alimenta da alma eterna do cantor de Israel, o brilho que o agita nos traspassa, a luz que ele pede nos deslumbra, transfigura nossas trevas em inefável alegria. Uma voz nos habita e nos encanta: ela nos arranca de nossos limites, nos faz atravessar os muros de nossas prisões, nos une aos esplendores subitamente mais próximos de nós que nós mesmos: um rosto nos ilumina, uma presença nos fecunda e, no caminho do verdadeiro conhecimento, um canto nos conduz à extremidade da noite, em tua luz, Jerusalém…


CAMINHOS DOS SALMOS
Três momentos articulam, portanto, os ritmos íntimos do Saltério. A noite é o reino em que o justo em sua ascese enfrenta, até o martírio, a iniquidade do criminoso. O julgamento de YHWH Adonai marca o fim da noite e restabelece a ordem real do mundo. O caminho de luz triunfa enfim na glória do reinado messiânico.

Estes três temas — o caminho das trevas, o julgamento de YHWH Adonai e o caminho de luz — comandam a composição do livro e se reencontram em cada um dos poemas ou das séries de poemas que o compõem, e nos descrevem os dois caminhos, seu confronto místico, o julgamento que os desempata e que garante o triunfo da justiça sobre a iniquidade, da vida sobre a morte.

Aqui, nada é deixado ao artifício do cuidado poético. Como dissemos, estamos num mundo de plena significação, submetido ao amplexo, ao deslumbramento da visão, A expressão é comandada pela ascética necessidade de circunscrever o real, de descrevê-lo em sua mais pura verdade. As palavras estão carregadas de poderes: na transparência dos símbolos, elas iniciam à verdade de YHWH Adonai. Dificilmente imaginamos uma maior intensidade de pensamento, uma coerência mais forte de expressão, transmitida com mais esplêndida liberdade, do que nessa inesgotável fonte de vida.


Estudos:
*LIVROS DOS SALMOS
*ROSENZWEIG — LINGUAGEM DOS SALMOS

Salmos: I; II; III; IV; V; VI; VII; VIII; IX; X; SALMO XVIII; SALMO XXI; SALMO XXIII; SALMO XLI; SALMO LXXXII; SALMO C; SALMO CX; SALMO CXV