Excertos de seu comentário ao Evangelho de Tomé – Logion 19
Podem ser muitas as árvores do Paraíso. Explica o Gênesis que quando plantou Deus o Jardim do Éden, fez brotar do solo “toda classe de árvores deleitosas à vista”. Mas o livro só nmeia duas destas árvores, que diz situadas em no meio do jardim: a Árvore da Vida (eterna) e a Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal, tão trabalhada pleo exegetas bíblicos (Gn 2,9). É certo que no Antigo Testamento se dá o nome e significação de outras árvores que foram plantadas por YHWH no Éden e alguns deles alcançaram grande renome, como aquele cedro que rememora Ezequiel e a qual nenhuma árvore do jardim de Deus o igualou em beleza (Ez 31,8), ou bem como os “carvalhos de justiça”, uma plantação especial que fez YHWH para manifestar sua glória (Is 61,3; também o Zohar II, 114 consigna que há outra árvore superior “que se chama Cedro do Líbano”), até chegar aos “aloés que plantou YHWH”, ao dizer do autor do Livro dos Números (Nm 24,6). Também está dito, fora do cânon mas sem que resulte difícil aceitá-lo, que “por detrás disto” (após todas de todas aquelas plantações), brotou no paraíso “a oliva que purifica aos reis e sumos sacerdotes da justiça”.
No entanto, a informação mais completa acerca das árvores do paraíso a proporciona o Livro (ou melhor, os Livros) de Enoque, aquele patriarca que segundo o Gênesis “andava em companhia de Deus, e cujo ciclo textual mostra tantos contatos com o Novo Testamento que se pode afirmar que dele partem grande número das raízes judias que desenvolve a teologia neotestamentária. No primeiro Livro de Enoque, intitulado “Livro dos Vigilantes”, se relatam duas viagens, na segunda das quais vai Enoque ao paraíso. O viajante descreve as árvores que encontra, das quais destacam precisamente cinco. Duas destas são a Árvore da Vida e a Árvore do Conhecimento (que Enoque denomina da Sabedoria), bem conhecidos pelo Gênesis1 . A identificação das outras três árvores perenes não carece de dificuldade. A viagem de Enoque tem por cenário uns lugares que o texto denomina “O país dos aromas”, e com efeito é o odor que cada árvore emana o único que se oferece como pauta de reconhecimento, o qual é uma fonte sutil mais propícia à percepção intuitiva que ao conhecimento sereno e reflexivo da razão. De todas maneiras a fonte dos aromas não deve ser descartada, pois segundo explica o apóstolo: “Em Cristo e por nosso meio difunde (Deus) em todas as partes o odoro de seu conhecimento”.
Diz Enoque: “Vi ali as árvores da unção”2 , receptáculos especiais de aroma de incenso e mirra3 . A unção é o primeiro andamento messiânico que corresponde a todo homem como estrato final do primeiro interregno em sua busca do reconhecimento de que “ele era antes de haver sido”. Quero dizer que com o azeite derramado sobre a cabeça se simboliza a descida da sabedoria de Deus, chamado a mudar o coração do homem. Este é o perfume do Espírito que desce e invade pouco a pouco, pois toma ao homem mortal, velho, como veículo, até o ponto de operar nele uma transformação de sua personalidade psíquica, que na linguagem veterotestamentária se denomina “receber outro coração” (Is 10,7).
Segundo relata a escritura, uma vez tendo derramado Samuel o corno de azeite sobre a cabeça de Saul, o disse: “Te invadirá o espírito de YHWH, entrarás em transe e ficarás mudado em outro homem”. Isto mesmo se diz que ocorreu quando foi ungido Davi, pois a “partir de então veio sobre Davi o espírito de YHWH (Is 16,13), acontecimento que foi reputado no saltério qual se YHWH houvesse suscitado a seu ungido Davi, “um forte rebento, para o qual profetiza: “emprestarei uma lâmpada a meu ungido” (Sl 132,17).
Acerca deste homem novo, ou ”rebento” cuja gestação começa após receber o fruto da oliva, a árvore da unção, já se comentou o que falou longamente Jesus a Nicodemo (v. Nascer do Alto) quando, segundo conta o evangelho joanico, após repreender ao magistrado judeu por ignorar coisas cujo conhecimento era próprio e natural por tradição em mestre de Israel, o disse: “O que não nasça da água e do Espírito não pode entrar no Reino de Deus” (Jo 3,5). Afirmava com isto Jesus que há um nascimento espiritual, um segundo nascimento que não é segundo a carne e que vem após o batismo de metanoia, purificador da água psyche, seguido da recepção de línguas de fogo “salgado” (conhecimento par os puros), emitidas pelo Espírito de consolação (Paracleto). Segundo isto, se vê que a união ou derramamento de óleo, é um modo veterotestamentário de expressar os resultados do duplo batismo, pois ambos concluem na primeira teofania, chamada comumente, epifania.
Outra árvore que viu Enoque, a terceira, nos vales de águas inesgotáveis do Paraíso, a descreve assim: “Vi uma árvore formosa, semelhante à aroeira da praia, cujo aroma era de almécega” (Enoque 30,2). A aroeira só é citada no Antigo Testamento uma vez no Livro de Daniel, a propósito da história de Susana. É sob a aroeira onde um dos anciãos “iníquos” do relato levanta seu falso testemunho. Daniel o recorda que o Senhor disse: “Não matará ao inocente e ao justo” (Dan 13,53). Aos dois anciãos iníquos os aguarda ao final o anjo do Senhor, segundo profetiza Daniel, espada na mão, “para partir-lhes ao meio” (de um lado o grão e do outro a palha para ser queimada; vide Parábola do Semeador), sendo cada metade um salteador ou ancião repartido na cisão da alma, todo o grão à direita e a palha à esquerda no dia de crucificação do inocente (Mc 15,27).
Não será difícil para os discípulos seguidores de Jesus, reconhecer nesta terceira árvore que viu Enoque e apesar das variantes da lenda, o madeiro da morte preparado para a crucificação. Na árvore de Enoque não havia mais aroma que o unguento de mástica ou almécega que se elaborava como bálsamo da resina que exalava a aroeira. É esta falta de perfumo o que reflete Marcos quando ao relatar a crucificação de Jesus, diz: “O davam vinho com mirra, mas não tomou” (Mc 15,27). No entanto, se atendemos a Enoque quando descreve o vale de águas inesgotáveis sobre o qual alçava a aroeira da crucificação: nas bordas daqueles vales, havia canela aromática” (Enoque 30,3) e é esta canela. o cinamomo bíblico, a qual o Eclesiástico descreve como “aquele que dá fragrância à sabedoria” (Ecl. 24,25).
Prosseguindo em sua viagem pelo país dos aromas, diz Enoque: “Atrás do monte vi outro no qual havia árvores de aloé, que estavam cheias de frutos como amêndoas” (Enoque 31,2; a amêndoa, heb. saquel, quer dizer: o que vela). Não é difícil entender que estes são os aloés que plantou YHWH (Nm 24,6), e cujo óleo diz o salmista que usa Deus, junto com a mirra, para revestir a seu ungido (Sl 45,9). O evangelista João menciona este aroma e revestimento como próprios da árvore da sepultura. Nicodemo acudiu com uma mistura de mirra e aloé, e com José de Arimateia envolveram o corpo de Jesus em panos com os aromas antes de depositá-lo no sepulcro novo (Jo 19, 39-40).
A primeira árvore (a quinta) que foi mostrada a Enoque em um monte de fogo que chamejava dia e noite, como a “chama da espada vibrante que guarde o caminho da Árvore da Vida” (Gn 3,24), pode e deve ser identificada como a Árvore da Vida, mas também como a árvore da ressurreição, pois foi dito: “Eu sou a ressurreição; aquele que crê em mim, ainda que morra, viverá” (Jo 11, 25-26). O que diz Jesus é que a Ressurreição e a Vida são uma só e mesma coisa, dos produtos da mesma fragrância. Enoque diz: “Havia uma árvore como nunca senti o cheiro, e nenhuma era como ela. Exalava um perfume superior a todos, suas folhas e madeira nunca se acabavam”. E agrega Enoque: “Vida se dará aos eleitos por seus frutos, e será transplantada ao norte, a lugar santo, na casa do Senhor, Rei eterno (Enoque 24,4; 25,5).
Isso é o mesmo que diz o autor do Apocalipse: “No meio da praça, a uma outra margem do rio, há árvores de Vida”(Ap 22,14). E o profeta Ezequiel, que talvez reconheceu e experimentou as cinco Árvores do Paraíso, agrega: “Seus frutos servirão de alimento (ressurreição) e sua folhas de medicina (Vida)” (Ez 47,12).