Rico e Lázaro [Ambrósio de Milão]

Parábolas EvangélicasRico e Lázaro

Ambrósio de Milão

Obras de San Ambrosio, I, Tratado sobre el Evangelio de San Lucas, Biblioteca de Autores Cristianos (BAC), Madrid, 1966, 655 p., edición bilingüe preparada por el padre Manuel Garrido Bonaño, O.S.B.Tradução de Antonio Carneiro do Livro Octavo 10- 13, páginas 481, 482, 483, 484, 485 e 486

Lc 16, 19-31. O rico Epulão

13. Havia um homem rico que se vestia de púrpura. E posto que se faz menção do nome, parece tratar-se mais de uma história que de uma parábola. Com toda intenção, o Senhor nos apresentou aqui a um rico que usufruiu de todos os prazeres deste mundo, e que agora, no inferno, sofre o tormento de uma fome que não se saciará jamais; e não em vão apresenta, como associados a seus sofrimentos, à seus cinco irmãos, quer dizer os cinco sentidos do corpo, unidos por uma espécie de irmandade natural, os quais estavam abrasando no fogo de uma infinidade de prazeres abomináveis; e, pelo contrário, colocou à Lázaro no seio de Abraão, como em um porto tranquilo e num asilo de santidade, para ensinar-nos que não devemos deixar-nos levar pelos prazeres presentes nem, permanecendo nos vícios ou vencidos pelo tédio, determinar uma fuga do trabalho. Trata-se, pois, desse Lázaro que é pobre neste mundo, mas rico diante de Deus, ou daquele outro homem que, segundo o apóstolo, é pobre de palavra, mas rico em fé. (Stg 2, 5) — na verdade, nem toda pobreza é santa, nem toda riqueza repreensível, mas sim do mesmo modo que a luxúria contamina as riquezas, assim a santidade recomenda a pobreza — , ou do homem apostólico que conserva íntegra sua fé, que não busca a beleza nas palavras, nem a provisão de argumentos, nem tampouco as faustuosas roupagens das frases, posto que este recebeu já sua apropriada recompensa quando lutou contra os hereges maniqueus: Marcion, Sabelio, Ario e Fotino — estes não são outra coisa que os irmãos dos judeus, aos que estão unidos por uma irmandade cheia de perfídia — , reprimindo os desejos da carne que, como disse, servem de incentivo aos cinco sentidos, quer dizer, desse que recebeu a recompensa, que se lhe prometeu, quando se lhe entregou, em pagamento, riquezas superabundantes e uma pensão perpétua.

14. E não é que creiamos que seja errado sustentar que esta passagem se refira à fé que Lázaro recolhe da mesa dos ricos, esse Lázaro cujas úlceras, segundo o texto, davam asco ao rico Epulão, que entre banquetes suntuosos não podia suportar o mal odor dessas úlceras que os cães lambiam, àquele que sentia fastio até do odor do ar e da própria natureza; e é que não se tenha dúvida da arrogância e o orgulho dos ricos tem sinais próprios para manifestar-se e de tal maneira se esquecem estes que são homens, que, como se estivessem por cima da natureza humana, encontram nas misérias dos pobres um incentivo para suas paixões, riem do necessitado, insultam o mendigo e saqueiam a esses mesmos de quem deviam apiedar-se.

15. Quem quiser pode aderir, como um novo Lázaro, aos dois pontos de vista. A este tal lhe comparo com aquele outro que foi açoitado muitas vezes pelos judeus (cf. 2 Cor 11, 24) para, por este meio, comunicar aos crentes a paciência e chamar aos gentios oferecendo, por assim dizer, as chagas de seu corpo para que fossem lambidas pelos cães; porque está escrito: Voltarão pela tarde e padecerão de fome, como os cães. (Sal 58,15). Não há dúvida que a mulher cananeia de quem se disse: Ninguém tira os pães dos filhos e os dá aos cães, compreendeu completamente este mistério. Entendeu claramente que este pão não é um pão visível, mas sim aquele que ele simboliza, e por isso respondeu: Bem, Senhor, mas os filhotinhos comem das migalhas da mesa de seus senhores. Essas migalhas são deste pão. E porque o pão é a palavra, e a fé é algo próprio da palavra, por isso se disse que as migalhas são como os dogmas de fé. E assim, para confirmar que esta afirmação era exata, lhes respondeu o Senhor: Oh mulher! Grande é tua fé! (Mt 15, 22ss).

16. Oh felizes úlceras que logram aniquilar a dor eterna! Oh migalhas abundantes que fazeis impossível o jejum sem fim, que acumulais de bens eternos ao pobre que as recolhe! O chefe da sinagoga os lançava de sua mesa ao atentar contra os mistérios internos das escrituras dos Profetas e da Lei; com efeito, as migalhas são as palavras das Escrituras, das que se diz: Destes as costas para as minhas palavras (Sal 49,17). Os escribas as rechaçava, mas Paulo as recolhia com todo cuidado quando, por meio de seu sofrimento, atraía o povo para si. Todos aqueles que viram que não temiam a mordida da serpente e que creram quando viram que a sacudia (At 28, 3 ss), lhe lambiam sua chaga. como também lhe lambeu e acreditou aquele guarda do cárcere que lhe lavou as feridas (ibid., 16, 33). Bem-aventurados esses cães sobre os quais cai esse líquido das úlceras, já que ele acumulará seus corações e fortalecerá suas gargantas com o fim de que estejam preparados para guardar a casa, defender os rebanhos e vigiar os lobos.

17. Coloque diante de tua vista agora os arianos, que não se preocupam senão com os prazeres deste mundo, buscando a aliança com o poder real, com o fim de atacar com as armas da guerra a verdade da Igreja; não te parece vê-los sobre estes leitos elaborados de púrpura e linho, defendendo seus erros como se fossem verdades, pródigos em discursos altissonantes, tendo a vanglória de falar de que a terra tremeu baixo o corpo do Senhor, que o céu se cobriu de trevas, que sua palavra fazia apaziguar o mar, quando, na realidade, negam que era o verdadeiro Filho de Deus? E contempla também a esse pobre que, sabendo que o reino de Deus não consiste em palavras, mas sim na virtude (1 Cor 4,20), expressou seu pensamento com brevidade dizendo: Tu és o Filho de Deus vivo (Mt 16, 16); não te parece que essas grandes riquezas padecem de uma grande necessidade e, pelo contrário, essa pobreza possui tudo? A heresia, que nada na abundância, compôs muitos evangelhos; a fé, pobre, conservou o único Evangelho que recebeu; a rica filosofia inventou muitos deuses; a Igreja, pobre, só conhece um Deus.

18. Assim pois, entre esse rico e este pobre existe “um grande abismo”, já que depois da morte não se poderão mudar os méritos; por isso nos mostra o rico no inferno desejando que o pobre lhe dê um pouco d’água refrescante, já que a água é o reconstituinte da alma atormentada pelos sofrimentos; por isso, fazendo alusão à esta, disse Isaías: Tirarei com alegria a água das fontes da salvação (12,3). Mas, porque aquele é torturado antes do juízo? Simplesmente, porque, para o luxurioso, o fato de não gozar os prazeres supõe já um castigo. Porque, com efeito, o Senhor disse: Ali haverá choro e ranger de dentes, quando virem Abraão, Isaque e Jacó e todos os profetas no reino dos céus. (Lc 13,28).

19. Tarde começa esse rico a ser mestre, posto que é tempo de aprender e não de ensinar. Nesta passagem, o Senhor proclama com toda clareza que o Antigo Testamento é o fundamento da fé, destroçando a maldade dos judeus e jogando fora as más intenções dos hereges, que são os que fazem naufragar as mentes mais fracas; na realidade, pequenos são todos aqueles que todavia não conhecem o progresso na virtude.

20. No entanto, é lícito notar que tanto a parábola do administrador aquele (Lc 16, 1ss) como a presente deste rico, contem uma solicitação à misericórdia, e facilmente, o que quis ensinar ali aos santos, à quem chama seus amigos e a quem lhes entrega suas casas, isto mesmo deseja que compreendam as pobres agora.