Reuchlin Cabala

Reuchlin — De arte cabalistica
Excertos de J. Reuchlin, A Cabala (1517; De arte cabalística), trad. do latim: François Secret, Aubier, 1979, p. 42-46. Trad. Yara Azeredo Merino
Cabala
Eivados de muitos vícios, os assuntos do século pervertiam e deturpavam cada vez mais pais, mulher, filhos, interesses de família, amigos, inimigos, acidentes, acontecimentos e qualquer ligação íntima com os próximos, não permitindo talvez às forças dos homens atingirem os níveis mais elevados da inteligência. Mas qualquer um que suponha haver apenas a aparência de desvario, que nada do que depende de nós não seja obstáculo, imagina uma capacidade assaz venturosa e próspera de nosso gênio. Agora, tudo está pronto para nos permitir alcançar as realidades mais elevadas. Ninguém poderá se compadecer da fragilidade humana. No entanto, o que está mais alto que o céu, mais profundo que o Tártaro, aquela obscuridade das realidades divinas que não se pode perceber nem pelos sentidos nem pela razão, isso não deturpará a maior parte da especulação, pois não recebe sua luz de nossos estudos como as outras ciências, mas a traz consigo própria. Ela irradia e brilha como de sua própria reserva sobre os homens que não são indignos. Todavia, não se oferece espontaneamente como se oferece aqui e ali o que é vil, sem ser solicitada. É por nossa vontade, que terá de ser primeiro educada e perfeitamente preparada pelo estudo das humanidades, que ela será atraída sem muita resistência, tal como afirma Salomão (Eclesiastes, 10, 10).1) Se o ferro está embotado, e se não for afiado, dever-se-á redobrar os esforços, e a sabedoria segue o mesmo esquema. Realmente, as coisas que foram elevadas do sentido ao intelecto são recolhidas graças à diligência e à arte do raciocínio das pessoas estudadas. Quanto às coisas que superam o intelecto e alcançam a Mente e a sua luz, estas assumem uma personalidade divina e não têm representação humana. Não há nada que possamos pensar de mais profundo. É por esse motivo que Salomão parece haver clamado, dizendo (Eclesiastes, 7, 24).2 Grande profundeza (ou profundo, profundo, é assim de fato que se lê em hebreu), quem a descobrirá? Ele não disse: quem a descobrirá? Ele não disse quem a possuirá? Muitos realmente a possuíram. Mas quem a descobrirá, como uma coisa difícil, mas não completamente impossível. Pois Deus dá a sabedoria, a bem-aventurança àqueles que a encontram, como foi dito nos seus santos oráculos (Provérbios, 2, 6).3 É dado a poucos encontrá-la e estes são os bem-aventurados. Sobre eles brilha o esplendor de uma luz venerável não pelos seus méritos, mas pelo dom de Deus. Não há, creio, quem não saiba que não cabe à multidão entender os desígnios de Deus. Assim, a turba clamou a Moisés (Êxodo, 20, 19).4 Fala-nos tu mesmo e nós ouviremos; mas que Deus não nos fale. Tu, dizem eles, tu, nós ouviremos o que Onkelos traduziu por Nekabel. E lê-se nos Capítulos dos patriarcas5 Mose kibel, Moisés ouviu e recebeu a Lei de Sinai. É por isso que Cabala significa ação de receber pelo ouvido. É preciso lembrá-lo e confiar, eu penso em sua memória; no meio de tal multidão, onde havia tantos santos, foi Moisés o escolhido para receber, da boca de Deus, o conhecimento da verdade e da justiça. Somente ele e nenhum outro. Assim, o célebre cabalista Azariel bar Salomão de Gerona6 escreve: nenhum profeta foi capaz de ouvir a palavra da boca de Deus, a não ser Moisés. Vós, portanto, excelentes homens, por quem gostos em comum me têm feito tomar amizade, vós compreendeis facilmente por que eu vos tenho dito, o que me havia escapado em meu caminho: sem a Cabala que é necessária ao gênero humano, e que lhes foi concedida pelo céu, ninguém pode obter essa penhora tão rara, tão difícil das realidades divinas, que não estão submetidas nem às argumentações da razão dos mortais, nem às acirradas disputas de vãs palavras, nem aos silogismos dos homens, em razão de sua divindade. Além disso realidades tão elevadas, tão sublimes, tão infinitas não poderiam ser dominadas, mesmo que uma vida fosse consagrada a elas, ou mesmo muitas, de um trabalho incansável, mesmo se os anos de nossa vida se prolongassem por vários séculos. Vivemos de fato nesta argila, nesta lama, neste grosso composto do corpo, e nós nos representamos pelos sentidos corporais. E os sábios mestres dos hebreus dizem:7 “é impossível para um ser de carne e sangue explicar o poder do maasse beresit.8 Muito mais se se trata da mercaba.9 Também é necessário agir como têm o costume de ensinar os autores do tratado e os mestres da arte. Acreditamos naquele que é perito em sua arte. Porque o especialista em lógica, para a parte do discurso, fia-se no que recebe do gramático; o retórico toma os temas de suas argumentações do lógico; o poeta e o orador do músico; o geômetra empresta as relações do aritmético; o astrônomo confia nos números, figuras e medidas dos matemáticos. Para os assuntos que ultrapassam a natureza, utiliza-se conjecturas fornecidas pelas ciências naturais. E toda ciência superior conjectura corretamente a partir do que estabeleceu a ciência inferior. Ela não examinará nenhuma experiência, pois saberá que esta foi confirmada por uma arte precedente. Fia-se generosamente em suas afirmações. Toda uma vida não bastaria aos homens paia poderem examinar perfeitamente a mínima razão de uma única ciência. Se é assim nos trabalhos humanos, que são ordinários e comuns, em que se recebe por tradição e em que se confia naqueles que se têm por haver distinguido em sua arte, como iremos pensar que é preciso menosprezar a tradição dos santos homens na ciência das realidades divinas mais elevadas, as quais podemos apenas alcançar, e não mais do que uma ou duas, por nossas próprias forças. Chama-se a essa arte Cabala em hebreu. A Cabala é verdadeiramente a recepção simbólica da revelação divina, transmitida para permitir a contemplação de Deus e das formas separadas, que assegura a salvação. Aqueles que a têm partilhado por uma inspiração do céu se chamam propriamente Cabálicos (Cabalici). Chamaremos seus discípulos de Cabaleanos (Cabalaei). Os que se esforçam para imitá-los devem ser chamados Cabalistas (Cabalistae): assim como aqueles que penam, a cada dia, sobre os propósitos que têm mantido.





  1. Ed, 10, 10: “Se o ferro está embotado, e não for afiado o gume, é preciso redobrar de esforços; mas afiá-lo é uma vantagem que a sabedoria proporciona”. (Ou: mas a sabedoria é preferível para o êxito. 

  2. Ecl, 7, 24: “Aquilo que acontece é longínquo, ptofundo, profundo: quem o poderá sondar?” 

  3. Prov, 2, 6: “Porque o Senhor é quem dá a sabedoria”. 

  4. Ex, 20, 19: “Fala-nos tu mesmo, e te ouviremos; mas não nos fale Deus, para que não morramos”. 

  5. Pirke Abot. 

  6. Azariel de Gerona (metade do séc. XIII). Tem-se dele um Commentaire sur la liturgie quotidienne (Comentário sobre a liturgia cotidiana), trad.: G. Sed-Rajna, Leyde, 1974. 

  7. Maimônides, O Guia dos desvairados (fim do séc. XII, escrito em árabe), trad.: S. Munk, Ed. Maisonneuve et Larose, 3 vol., LVI-1378 p. 

  8. Maasseh bereshit: a história da criação: o esoterismo cosmogónico dos cabalistas (Gênesis; Seferyezirah). 

  9. Maasseh merkavah: a história do carro: o esoterismo teosófico dos cabalistas (Ezequiel, 1, 8, 10; Enoque 1,14: Sefer heikhalot). Al-Ghazzâlí (1059-1111).