Que chamaremos “cristianismo”? [MHSV]

Nosso propósito não é de nos perguntar se o cristianismo é “verdadeiro” ou “falso”, estabelecer, por exemplo, a primeira destas hipóteses. O que aqui está em questão é, todavia, aquilo que o cristianismo considera como a verdade, o gênero de verdade que propõe aos homens, que se esforça de lhes comunicar não como uma verdade teórica e indiferente, mas como esta verdade essencial que lhes convém por alguma afinidade misteriosa, a ponto de ser a única capaz de garantir sua salvação. É esta forma de verdade que circunscreve o domínio do cristianismo, o meio onde se move, o ar, se se ousa dizer, que respira, que se tentará compreender. Pois existem muitas espécies de verdades, muitas maneiras de ser verdadeiro ou falso. E talvez também de escapar do conceito de verdade que domina o pensamento moderno e que, tanto nele mesmo como por suas implicações múltiplas, determina o mundo onde vivemos. Antes de tentar uma elucidação sistemática do conceito de verdade, a fim de reconhecer a verdade insólita e encoberta própria ao cristianismo, verdade em total oposição com aquela que tomamos ingenuamente hoje em dia como o protótipo de toda verdade concebível, se coloca um problema prévio. Trata-se de delimitar de maneira ao menos provisória aquilo que será indagado sobre a natureza da verdade que ele professa: que chamaremos então “cristianismo”?

Aquilo que se encontra expresso em um conjunto de textos designados sob o título de Novo Testamento, é isto que se entende por cristianismo – e isto de todo direito, assim parece. Pois onde se poderia investigar o “conteúdo” do cristianismo a fim de refletir sobre isto que ele considera como verdade, se não no corpus constituído pelos Evangelhos, os Atos dos Apóstolos, as epístolas destes, de Paulo, de Tomé, de Pedro, de João, de Judas, e enfim pelo Apocalipse, atribuído ao mesmo João? Não é sem dúvida a partir deste corpus que foi elaborado este conjunto de dogmas que definem o cristianismo? O conhecimento do cristianismo – e assim toda reflexão sobre sua possível “verdade” – não passa por aquela destes textos? Somente sua análise minuciosa pode conduzir, assim parece, à inteligência disto que é verdadeiramente o cristianismo em seu núcleo essencial.

A abordagem do cristianismo a partir do corpus de textos onde se propõe seu conteúdo apresenta dois caracteres. Em primeiro lugar, implica em pesquisas em número infinito concernentes a estes textos mesmos e o que se pode chamar em geral de sua autenticidade. De quando eles datam, de quando datam em particular aqueles que serão reputados canônicos e sobre os quais se fundará o dogma? Por quem foram redigidos? Por testemunhas oculares dos estranhos eventos que relatam e que gravitam à volta da existência do Cristo? Ou bem mais tarde por pessoas que teriam pelo menos entendido o relato destas testemunhas? Ou bem, a uma época ulterior, elementos esparsos, tomados a uma tradição oral incerta, provenientes de fontes heterogêneas, fizeram objeto de uma verdadeira reconstrução, de um amalgama, de uma invenção, a ponto que a ideia mesma de um modelo inicial se tornou contestável e que em presença de textos remanejados, arrumados ou simplesmente fabricados, objeto finalmente de um imaginário coletivo muito mais que recensão de eventos que teriam sido realmente produzidos, aquela das ações do Cristo e de sua palavras fundamentais, mas de uma simples mitologia?

Muitas outras questões, na verdade, se colocam a respeito destes textos. Em que língua foram escritos? Em grego, segundo a interpretação mais frequente, ou bem em hebraico, ou ainda em uma língua local? Ora uma língua não é apenas um meio de comunicação separado disto que tem por missão comunicar; investida de significações múltiplas que não se reduzem àquelas da linguagem a falar propriamente, a língua veicula os esquemas práticos e cognitivos que definem uma cultura. Se se trata do grego, é todo o pensamento grego – um pensamento que não é somente grego mas que vai reinar sobre o mundo ocidental em seu conjunto – que pesa sobre o cristianismo das origens. As interpretações aristotélicas e platônicas que, dos Padres da Igreja aos pensadores da Idade Média, vão determinar a teologia cristã, são fundamentadas no princípio. Se as primeiras redações são em aramaico ou em hebraico – neste caso desapareceram totalmente -, a referência incontornável do Novo ao Antigo Testamento, que ninguém contesta, seria mais decisiva ainda. A pretensão que foi aquela de Paulo de introduzir diretamente no cristianismo em fazendo senão a economia do judaísmo, pelo menos de suas práticas e da lei – em resumo de se apresentar como o Apóstolo dos Gentios, dos incircuncisos -, se presta a controvérsias. Se os escritos originais eram em hebraico, a referência ao Antigo Testamento não se limita a uma simples condição histórica, ela reside no Novo Testamento ele mesmo, a ponto que este, em lugar de ser destacado do Antigo como será na heresia de Marcion, arrisca ao contrário de aparecer como uma variante entre outros escritos judaicos. Estes últimos, dispostos aliás segundo estratos diversos, deram lugar, sabe-se, a comentários múltiplos, a comentários de comentários e o cristianismo seria apenas um dentre eles – seus heróis, a simples reaparição de personagens tendo já desempenhado um papel sobre a cena do Antigo Testamento, vide a realização de entidades metafísico-religiosas cuja pesquisa erudita poderia seguir a progressão e os avatares.

O segundo caráter de uma abordagem do cristianismo a partir do corpo dos textos evocados, não é unicamente de conduzir a pesquisas sem fim. De sorte que aquele que desejasse interrogar o Evangelho sobre a salvação de sua alma não deveria somente, segundo a nota irônica de Kierkegaard, esperar a aparição do último livro sobre a questão, ele deveria ainda, em última instância, se lançar em estudos que a morte certamente viria interromper antes que pudesse obter deles, de tanto saber e exegese, a primeira palavra de uma resposta a única questão que importa. E isto porque aquilo do qual depende a resposta, a verdade do cristianismo, não tem precisamente nenhuma relação com a verdade que decorre da analise dos textos e de seu estudo histórico.