Quadro de Camuliana

ICONOGRAFIA — QUADRO DE CAMULIANA

Excertos de Ewa Kuryluk, “SANTA VERÔNICA E O SUDÁRIO”
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Na segunda metade do século VI um retrato de Cristo caiu dos céus para confirmar a existência de Deus a uma mulher pagã, Hypatia, que alegava não poder acreditar naquilo que não via. Uma nativa de Camuliana (ou Camulia), uma pequena cidade da Capadócia, a noroeste da capital Caesarea-Mazaca, encontrou no lago de seu parque uma tela pintada na qual imediatamente reconheceu uma reprodução de Cristo. Retirou o quadro da água, percebeu que estava completamente seco e enrolou-o em sua manta. Um segundo milagre ocorreu então: a imagem ficou impressa em seu vestido, produzindo uma réplica fiel do retrato do Senhor.

Convencida da existência de Deus através de sua milagrosa aparição, Hypatia converteu-se ao cristianismo.

A versão mais antiga da história do quadro de Camuliana foi escrita em siríaco depois de 560 mas antes de 574, o ano em que o ícone foi transferido com pompa para Constantinopla. A lenda não nos conta quando o milagre aconteceu, e o fato de Hypatia ter sido pagã não significa necessariamente que ela deve ter vivido no período pré-Constantino, pois, até a época de Justiniano, havia um número considerável de pagãos na Ásia Menor, especialmente entre a população rural. Uma versão posterior da lenda cita a época do Imperador Diocleciano (284-305 d.C.) para as suas origens, e o governo de Theodosius I (379-95) para a redescoberta do retrato, mas isso também não prova nada, pois a perseguição violenta de Diocleciano aos cristãos tornou este período particularmente adequado às lendas. Será que o quadro existia antes que a lenda fosse escrita? Talvez, mas provavelmente não por muito tempo. Em qualquer caso, não representava então o papel que chegou a desempenhar no último quartel do século VI. A fama do retrato cresceu quando sua primeira cópia — produzida diretamente na manta de Hypatia — foi transferida para Cesareia, a capital da Capadócia, quando, subsequentemente, uma segunda cópia foi adicionada à primeira. Foi obtida através da devoção de uma mulher cristã de Diobulion (na diocese de Amaseia de Pontus) que construiu uma igreja em honra do ícone sagrado. Em 554 Diobulion foi tomada pelas hordas bárbaras, mas, apesar de a igreja ser arrasada, o quadro sobreviveu.

Ansiosa em reconstruir o santuário, a população local foi apoiada pelo imperador, e relativamente ao fato, um dos oficiais imperiais teve uma ideia inteligente — fazer com que o ícone obtivesse seus próprios rendimentos. Nos anos de 554-60 o retrato de Cristo saiu em procissão por toda a região, produzindo a esperança de um advento iminente do Salvador à comunidade cristã. De modo bastante interessante, o autor da história só se refere à cópia de Diobulion como acheiropoietos, uma indicação, talvez, que esse ainda era um termo recente na época dos seus escritos. Mas o uso de acheiropoietos com respeito à cópia poderia também ter significado que o original era considerado uma imagem que havia caído do céu, enquanto que “não feito pelas mãos” pareceria um termo apropriado para um ícone miraculosamente reproduzido na Terra.

Em 574, o retrato original de Cristo de Camuliana foi transferido para a coleção imperial de relíquias em Constantinopla, junto com partes da Cruz Sagrada de Apameia da Síria. Na capital, a reprodução do Senhor impregnou um novo tecido e deu origem a outra cópia. Nos dias do Imperador Tibério II (578-82), Maria, uma viúva doente, que esperava ser curada por intermédio do Rosto Sagrado, pediu para que a imagem “verdadeira” lhe fosse emprestada por quarenta dias. Devido à origem nobre e à beatitude de Maria, seu desejo foi satisfeito. Quando obteve a tela, ela a cobriu com um lençol de algodão de tamanho idêntico e colocou-a numa gaveta na capela de sua casa. Logo após suas condições de saúde deterioraram, e como não podia mais levantar-se, pediu à sua criada que trouxesse a gaveta. A serviçal, porém, não pôde satisfazer o desejo de sua patroa, pois foi surpreendida por chamas que ardiam no local exato onde o ícone estava guardado. O evento miraculoso atraiu uma multidão, que incluía um padre, e todo mundo viu o fogo. Quando este se apagou, o quadro sagrado apareceu intocado por ele, e adicionalmente uma cópia exata do original tornou-se visível no lençol que o cobria; Maria tocou-o e imediatamente ficou curada. Antes de sua morte, a viúva presenteou sua própria cópia a um convento em Militene, no leste de Capadócia. Durante as guerras persas e sob o Imperador Heraclius (610-41), as freiras fugiram para Constantinopla levando o ícone com elas. Na capital, foram recebidas pelo patriarca Sergius, que confiscou o tesouro delas; mas como foi atingido pelo infortúnio e visões celestes exortavam-no a devolver a relíquia, ele levou o ícone de volta às freiras, que então o mantiveram em seu convento na capital.
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Na primeira metade do século VII, Constantinopla possuía portanto dois Cristos Capadocianos acheiropoietoi, um na coleção imperial de relíquias, o outro num convento. Mas na época em que o ícone de Melitene chegou à capital, o quadro de Camuliana havia se tornado o paládio principal do império bizantino, e foi frequentemente carregado pelo exército durante as guerras persas. O marechal de campo Philippicus, lutando para o imperador Maurice (582-602), exibiu o acheiropoietos do Cristo de Camuliana diante de suas tropas para elevar o espírito dos soldados. Da mesma forma sob o Imperador Heraclius, o retrato Sagrado de Jesus deu assistência ao exército. Essa posição central do paládio deve ter sido a razão para a interpretação do retrato de Melitene não só como mais uma impressão original, mas como uma cópia do acheiropoietos de Camuliana.

Quando desfilavam em procissões através do campo, exibidos nos festivais religiosos das igrejas, mostrados aos exércitos antes das batalhas, ou trazidos com o propósito da cura ou da salvação, os acheiropoietoi e suas cópias substituíam Jesus e reproduziam seus milagres. As imagens “verdadeiras”, multiplicando-se consideravelmente devido à sua facilidade de reprodução (através de um simples toque), representavam um novo tipo de retratação. Eram cópias xerox de Deus fixadas pela sua divindade — e não pela ação humana. A partir desse momento, entretanto, precisamos distinguir entre os acheiropoietoi “idôneos” e suas reproduções artísticas.

Os primeiros eram, supostamente, verdadeiramente miméticos e foram portanto executados aproximadamente no mesmo tamanho e material que o original; os segundos eram mais ou menos (reproduções) exatas dos acheiropoietoi desenhados, pintados, em mosaico, relevo, escultura, tessitura, bordado, etc., e apareciam sob a forma de quadros separados ou inclusos em programas pictóricos. Sempre que uma reprodução artística se constituía numa imagem autônoma, as linhas divisórias entre um acheiropoietos e sua reprodução pictórica tornavam-se facilmente imprecisas e o artefato terminava sendo reverenciado como se fosse “não feito pelas mãos”, especialmente quando a reprodução se encontrava num lugar distante, removido de sua localização original. E claro que todo mundo desejava possuir a coisa verdadeira e assim os acheiropoietoi eram fabricados por artesãos espertos e comercializados por negociantes astutos, como hoje em dia as “gravuras originais” — num estúdio do Soho por um Chagall ou um Dali, já falecidos.