Como é próprio do autor do quarto evangelho, a narrativa do novo sinal começa com uma alusão ao tempo: “Estava próxima a páscoa dos judeus, e Jesus subiu a Jerusalém” (2, 13). No v. 23 repete: “Quando estava em Jerusalém pela festa da páscoa…”. As duas referências à páscoa perfazem uma “inclusão bíblica”, isto é, uma unidade literária baseada na festa. Desde o tempo da reforma deuteronomista, em 622, levada a efeito pelos sacerdotes e rei Josias, que todas as festas e sacrifícios se deviam realizar exclusivamente em Jerusalém e respectivo Templo, obviando, assim, ao sincretismo religioso com o politeísmo cananeu.
Depois desta primeira páscoa teremos mais duas páscoas (cf. 6,4; 11, 55; 12, 1; 13, 1) e, ainda, a alusão a várias festas litúrgicas (5, 1: “depois disto, havia uma festa dos judeus e Jesus subiu a Jerusalém”; 7,2: “Estava próxima a festa judaica das Tendas”; 10,22: “Em Jerusalém celebrava-se, então, a festa da Dedicação do Templo”).
Como já dissemos, a primeira parte do evangelho — o livro dos SINAIS — tem por objectivo apresentar a pessoa de Jesus em confronto com as várias festas e instituições religiosas judaicas. A própria estrutura do livro já representa, por si mesma, uma estrutura retórica, a partir das festas judaicas. A simples maneira do autor apresentar as festas — “a páscoa dos judeus… uma festa dos judeus… a festa judaica das Tendas…a festa da dedicação do Templo” — indica que tais festas já nada têm a ver com a fé cristã. Pertencem a um outro mundo de simbologia religiosa. Trata-se da tal retórica dirigida aos cristãos judeus que ainda continuavam, de alguma forma, com as saudades dos velhos ritos judaicos, por um lado, confirmando, por outro, a fé cristã de judeus e não-judeus.
João é o único a distinguir as duas partes do templo de Jerusalém: a parte exterior ao Templo, aberta aos pagãos e ao comércio necessário para os sacrifícios rituais, a que chama “hieron” (vv. 14 e 15) e a parte interior reservada exclusivamente aos judeus, a quem chama naós (vv. 19.20.21). Podemos traduzir o “hieron” por “Templo” e o naós por “santuário”.
O autor coloca esta narrativa na primeira semana da atividade de Jesus (cf. 1, 29: “No dia seguinte”; 1, 35: “No dia seguinte”; 2, l: “Ao terceiro dia”; 2,13: “Estava próxima a páscoa dos judeus…”). Embora as referências cronológicas possam ter uma explicação simbólica, a verdade é que a cronologia de João se opõe à dos Sinópticos, que colocam a “purificação do Templo” na última semana da vida pública de Jesus. Também a cronologia dos Sinópticos não é para se tomar à letra, porque a estrutura do evangelho obedece a uma estrutura geográfica simples: pregação de Jesus na Galileia e viagem de morte-ressurreição na Judeia. De qualquer modo, os exegetas, na sua maioria, concordam que os Sinópticos, neste pormenor, estão mais de acordo com a realidade histórica dos acontecimentos. João obedece a um esquema teológico: depois de expor o testemunho de João Batista e discípulos e depois de apresentar o primeiro “sinal” das Bodas de Caná, apresenta-nos o sinal da purificação do Templo. Desde o princípio que o autor quer deixar bem claro o que é que significa o Templo, como centro de toda a vida religiosa judaica, para os cristãos. O apego ao Templo era, talvez, o maior perigo para a fé cristã nos seus embates com a fé judaica. Pelos Atos dos Apóstolos sabemos que os primeiros cristãos — todos judeus — frequentavam o Templo (3,46: “Como se tivessem uma só alma, frequentavam diariamente o templo, partiam o pão em suas casas…”). Na época em que o autor-redator final escreve o quarto evangelho, semelhante situação já estava ultrapassada pelo fato da tomada de Jerusalém pelos romanos no ano setenta, respectiva destruição do Templo e respectiva assunção da identidade cristã frente à identidade judaica de tipo rabínico e farisaico.
Se Jesus é o “Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo”, como vimos no testemunho de João Batista (1, 29. 36), e se é o “noivo” do banquete escatológico das Bodas de Caná, também é o “Cordeiro pascal” do novo Templo e o “mensageiro” de Deus de Ml 3, 1 ligado ao seu santuário: “Eis que eu vou enviar o meu mensageiro, a fim de que ele prepare o caminho à minha frente. E imediatamente entrará no seu santuário o Senhor que vós procurais e o mensageiro da aliança que vós desejais “Jesus é este “Senhor procurado e encontrado” pelos discípulos de João Batista, acreditado pelos discípulos de Jesus nas Bodas de Caná (2, 11) e, agora, o novo Templo de Deus (v. 21: “Porém ele falava do santuário (naós) do seu corpo, e quando ressuscitou dos mortos os seus discípulos recordaram que tinha dito isto…”). Uma vez mais, o texto reenvia-nos para o tempo pascal, que é o tempo de Jesus e sua Igreja.