Ascetismo e Misticismo — Saltério
Entre as possibilidades que se abrem diante da grandeza dos salmos e de sua importância na tradição judaico-cristã, escolhemos aquela que o aborda como orientações simbólicas quanto a um trabalho de ascetismo, pela meditação concentrada na forma de oração (euche) e também como ensinamento místico sobre a Realidade. Neste sentido é necessário certa preparação para a linguagem dos salmos, especialmente quanto ao emprego de metáforas deste combate espiritual a ser travado pelo ser humano, interiormente. A justa compreensão dos salmos e sua meditação como oração só se dará se concentrarmos nossa atenção para o que é dito nos salmos, tendo a certeza que sempre se refere: não a inimigos externos, mas internos ao coração do homem (como enfatiza a Philokalia); não a um deus externo a nós que fará ele mesmo o combate a ser feito por cada individualmente, dentro de si mesmo, mas a um Deus em nós, em nosso coração que se levantará “contra nossos inimigos”, interiores; enfim, não à vitória externa, neste mundo, mas à glória interna pela união a Deus e o rechaço a nossos inimigos interiores.
A leitura dos salmos, segundo estas perspectivas, que impõem uma transposição de tudo o que é dito em sua linguagem metafórica a respeito de inimigos e combates, para o que se passa no mundo interior do ser humano, é a única aproximação válida e benéfica da riqueza dos salmos no trabalho espiritual de cada um. Segundo uma das traduções mais conceituadas da Bíblia, a de André Chouraqui:
Os místicos de Israel puderam ler os Salmos como o apocalipse das manifestações escatológicas e das libertações messiânicas. Na luta contra a besta, o Saltério constituía a reserva das verdadeiras armas do combate; cada versículo, cada palavra era uma espada, e cada espada tinha o poder de morte sobre os demônios. Antes da hora da libertação final, o justo devia se familiarizar com as potências das palavras como o guerreiro que lustra suas armas, para nelas encontrar o reconforto da alma no brotar dos fogos místicos do verbo. O salmista sabe o que diz: ele o exprime com uma maestria e uma economia de palavras que fazem dessa compilação um monumento único na história do espírito, um encontro marcado com a eternidade.
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Na cristandade, os Padres da Igreja, seus doutores, seus poetas jamais cessaram de interrogar ansiosamente o mistério desse livro introduzido nas liturgias tanto da Igreja como da Sinagoga. O segundo cânone do concílio de Niceia exige mesmo do candidato ao episcopado que conheça a fundo o Saltério: “Ordenamos que o candidato à dignidade episcopal conheça absolutamente bem o saltério, para que possa assim obrigar todo o seu clero a iniciar-se nele cia mesma maneira.” De fato, na tradição cristã, o recurso ao Saltério aparece desde os primeiros tempos, nos próprios evangelhos, onde constitui cerca da metade das referências ao Antigo Testamento. Ele é tão rico, tão denso, que o espírito desespera de apreender sua dimensão real, de encontrar a chave que abra todas as suas portas. Mesmo na espiritualidade oriental, centrada sobre a ruminação do nome de Jesus, o Saltério conservará esse privilégio. A Philokalia (antologia de textos monásticos bizantinos) considera não apenas que ele contém a totalidade da escritura mas que apresenta a via real da theoria, da contemplação dos mistérios da criação.
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Assim os místicos de Israel puderam ler os Salmos como o apocalipse das manifestações escatológicas e das libertações messiânicas. Na luta contra a besta, o Saltério constituía a reserva das verdadeiras armas do combate; cada versículo, cada palavra era uma espada, e cada espada tinha poder de morte sobre os demônios. Antes da hora da libertação final, o justo devia se familiarizar com as potências das palavras como o guerreiro que lustra suas armas, para nelas encontrar o reconforto da alma no brotar dos fogos místicos do verbo. O salmista sabe o que diz: ele o exprime com uma maestria e uma economia de palavras que fazem dessa compilação um monumento único na história do espírito, um encontro marcado com a eternidade. (Louvores, Introdução. Imago, 1998).
*Internet Archive
*Biblioteca Nacional da França
**Les manuels pour l’illustration du psautier au XIIIe siècle / par Samuel Berger — 1898 — BNF-Gallica
**Diversos — BNF-Gallica
Estudos e excertos:
*SALTÉRIO CRISTÃO PRIMITIVO
*CAMINHOS DOS SALMOS
*SALMOS