THOMAS MERTON — TEMPO E LITURGIA
O SACRAMENTO DO ADVENTO NA ESPIRITUALIDADE DE SÃO BERNARDO (cont.)
É FÁCIL PARA NÓS APROXIMARMO-NOS D’ELE
Nossa incorporação no mistério de Cristo, o dom da vida divina, é pura manifestação da caridade de Deus para conosco. Nisso consiste a caridade… que Ele nos amou primeiro. Etienne Gilson demonstrou a importância básica dessa idéia de São João na teologia mística de São Bernardo.1 Havia duas razões pelas quais não nos podíamos aproximar d’Ele: estávamos cegos, e Ele habita numa luz inacessível. Estávamos desamparados, espiritualmente paralisados, e Ele habita infinitamente acima de nós. Jamais poderíamos subir até Ele, foi preciso que descesse até nós. Isso é de grande importância no mistério do Advento — a descida de Deus até a nossa pequenez, por puro amor, não por mérito algum de nossa parte. A misericórdia divina mostra-se mais evidente na ternura com que o Deus infinito proporciona a força de sua luz à fraqueza de nossos olhos e se torna Homem como todos nós.
“Nosso dulcíssimo Salvador e Médico de nossas almas desceu de sua grande elevação e amorteceu o seu esplendor para se adequar aos nossos fracos olhos. Escondeu-se como que numa lanterna, revestindo-se de seu corpo glorioso, puro de toda mancha. Essa é a luz e a nuvem luminosa que o profeta declarou que subiria de maneira a descer no Egito”.2
Não temos que ir muito longe para encontrá-lo. Ele está em nós. Essa idéia é, também, basicamente paulina: “Não digas, em teu coração: quem subirá ao céu para fazer Cristo descer de lá? Nem dirás: quem descerá ao abismo para fazer Cristo ressurgir dentre os mortos? Não, diz a Escritura, a palavra de Deus está próxima de ti, em tua boca, em teu coração” (Rom 10,6-8). Isso é o verbum fidei, a palavra proclamada que planta a semente da fé em nossos corações e nos introduz no mistério de Cristo ou na Pascha Christi. É pela palavra da fé ou o verbum crucis que o “Advento” de Cristo se torna uma realidade em nossa vida pessoal (Rom 10,10). Sobretudo, isso significa “crer com o coração que Deus ressuscitou Cristo dos mortos”. Tal fé faz Cristo viver em nossos corações (Ef 3,17) e abre o caminho à contemplação baseada numa caridade que nos ensina a tudo medir, “a largura, o cumprimento, a altura, a profundidade do amor de Cristo que está acima de qualquer conhecimento (gnosis)” (Ef 3,19). Pela caridade, o Espírito Santo atua em nossos corações “com um poder que atinge o nosso mais íntimo ser” (Ef 3,16; Rom 5,5) que nos torna conscientes do fato de que somos filhos de Deus (Gál 4,6) e nos dá a seu respeito um conhecimento (gnosis) especial (Gál 4,9; cf. 2 Cor 1,22). Seu efeito final é transformar-nos inteiramente em Deus. “O Espírito do qual falamos é o Espírito do Senhor, e onde está o Espírito do Senhor, ali está a liberdade… Refletindo como espelhos a glória do Senhor, nós nos transformamos nessa mesma imagem cada vez mais resplandecente, conforme a ação do Senhor, que é espírito” (2 Cor 3,17). Como indica São Paulo, tudo isso é precedido pela metânoia, conversatio, um voltar-se inteiramente para o Senhor, uma conversão que é, no entanto, muito mais uma vinda de Deus a nós: “Ouvi a tua oração no tempo do perdão, vim em teu auxílio no dia da salvação” (Gál 4,9). Nossa tarefa consiste em cuidar que “não recebamos a graça de Deus em vão” (Gál 6,2). São Bernardo faz eco a essas idéias: “Não te cabe, ó homem, atravessar os mares, penetrar nas nuvens ou transpor os Alpes”. (Esses pensamentos já haviam sido expressos por Santo Antão do deserto, em termos muito semelhantes). Continua São Bernardo: “Não é uma grande viagem que te é oferecida: se queres encontrar a Deus, caminha até teu coração”. Non granáis Ubi ostenditur via: USQUE AD TEMETIPSUM OCCURRE DEO TUO. Aqui ele cita Rom 10,8: Prope est verbum in ore. . .
Para encontrar a palavra em nosso coração, temos de entrar em nós mesmos, não tanto pela introspecção, mas pela compunção. Isto é importante. O movimento interior de compunção não consiste tanto em nos escondermos dentro de nós mesmos, é antes uma liberação de nós mesmos, que se realiza nas profundezas de nosso ser e nos faz sair de dentro para fora. Essa liberação da concentração sobre nós mesmos é o início da conversão, a metânoia, uma verdadeira transformação interior. De modo algum quer São Bernardo que nos tranquemos dentro de nós mesmos assim como somos, para permanecermos os mesmos. Nem insta conosco para encontrarmos uma presença apenas metafísica de Deus nas profundezas de nosso ser.
Não está ele pensando em algo de estático, mas antes numa atuação dinâmica do poder de Deus. Vamos ao encontro da ação transformante de Deus em nossas almas. Esse encontro espiritual é um Advento, em que Deus vem ao nosso ser mais íntimo e nós nos encontramos n’Ele. O encontro ocorre num ato de fé viva, e o primeiro sinal da transformação é uma libertação de nós mesmos em Cristo, manifestada pela “oris confessio” — confissão de nossa fé.
É perfeitamente claro que São Bernardo concebe isso como uma liberação, uma saída da prisão do “egocentrismo”. De modo particular, é uma liberação da deprimente preocupação com nossas próprias falhas. Saltem exeas de sterquilinio miserae conscientiae. A verdadeira vida interior não é a nossa própria vida dentro das profundezas de nosso ser. É a vinda de Deus em nosso ser, do qual nós previamente saímos, para dar a Ele lugar. A presença de Deus, em Sua pureza, dá-nos a verdadeira vida interior, puritas cordis. Ele é, evidentemente, o “auctor puritatis”. Por este “Advento”, vem à nossa alma e a ilumina com sua presença invisível.3
É fácil ir a Ele, porque Ele vem a nós na misericórdia, e não na justiça e na sabedoria. (Cristo, a “abelha” que se alimenta entre as flores de Nazaré, vem a nós sem a ferroada, mas com o mel.4) Ele vem como médico para curar as feridas do pecado.5 Ele vem como uma criancinha, para não nos aterrorizar;6 Ele é um cordeiro cheio de mansidão que, para tirar todos os nossos temores, nasceu de sua Mãe Virgem, sem as dores do parto. (Ibid., n.4)
Embora venha de longe, uma vez que está infinitamente acima de nós em sua majestade, vem, no entanto, de perto, desde que está sempre conosco como nosso Criador. Assim, seu Advento é menos uma vinda do que uma manifestação de sua presença, pois Ele já está aí.7)
E. Gilson, La théologie mystique de St. Bernard ↩
Serm. 1, Adv., n.8 ↩
Serm. 1, Adv., n.10; cf. Serm. 6, Adv., n.2. ↩
Ad nos veniens solum mel attulit et non aculeum, id est misericordiam et non iudicium. (Serm. 2, Adv., n.3 ↩
Serm. 4 in Vig. Nat, n.2. ↩
Parvulus datus est parvulis ut magnus detur magnis. (Serm. 4 in Vig. Nat., n.1 ↩
Non ergo venit qui aberat sed apparuit qui latebat. (Serm. 3, Adv., n.1 ↩