É que essa relação consigo sobre o fundo da qual o ego relaciona tudo a si mesmo, o mundo e seus bens, essa relação assume precisamente a forma de Preocupação. Relacionar-se consigo preocupando-se consigo é lançar-se em direção a si, para si, pro-jetar-se para si, abrir para si um caminho que é o do “fora de si”, que é o “aí fora” do mundo. É projetar-se para um si exterior, um si vindouro e irreal. Irreal, o si exterior não o é antes de tudo porque ele não esteja ainda senão por vir, no modo do ainda-não, mas porque se exibe na verdade do mundo, ali onde não há Vida, nem Ipseidade, nenhum Si possível, por conseguinte.
Assim, opõem-se radicalmente dois modos para o ego de se relacionar consigo, dois modos heterogêneos dessa relação. A relação do ego consigo na preocupação consigo, relação em que, lançando-se fora de si para si, o ego nunca atinge nada além de um fantasma, alguma possibilidade – tornar-se rico, poderoso, prestigioso – que ele se impõe por tarefa “realizar”, mas que precisamente nunca será real enquanto ele se relacionar com ela na Preocupação. Por outro lado, a relação do ego consigo na vida, relação gerada na Ipseidade original da Vida e que só é possível nela. A relação do ego consigo no “ser em preocupação consigo” não se opõe somente de modo radical à relação do ego consigo na Ipseidade da Vida: entre elas se instaura uma relação de exclusão recíproca. A relação do ego consigo na Ipseidade da Vida determina o Si real, o Si absolutamente imanente, tomado no estreitamento patético da Vida e constituído por ele, que jamais se afasta desta, que não se ergue diante de nenhum olhar. Ao contrário, a relação do ego consigo em preocupação consigo no mundo não libera senão um Si fantasmático e irreal. Este não [204] cessa de ocupar o palco, está em todos os projetos, todos os projetos o conduzem a ele mesmo. Ocupe-se ele de seus assuntos, dos outros, das coisas ou diretamente de si mesmo, este ego, na verdade, não cessa de se ocupar de si. Mas como o Si verdadeiro – que torna em última instância possível este ego, que o dá a ele mesmo na Ipseidade da Vida – não aparece nunca na parte da frente do palco e se mantém à parte do espetáculo, não é com ele que o ego se preocupa. Não por efeito de uma simples distração, de uma futilidade qualquer. Uma razão mais profunda determina a impossibilidade para o ego de se preocupar com seu Si verdadeiro. Esta razão reside na própria estrutura da Preocupação que se projeta nesse “lá fora” onde nenhum Si real nunca se encontra. Do sistema transcendental do egoísmo em que, em seu atarefamento, o ego não cessa de se relacionar consigo no mundo, o Si gerado na Vida está ausente por princípio. Assim surge a relação de exclusão recíproca sobre a qual vai fundar-se a ética cristã. Quanto mais o ego estiver preocupado consigo, mais sua verdadeira essência lhe escapará. Quanto mais ele pensar em si, mais ele esquecerá sua condição de Filho.