Excertos da tradução do Mosteiro da Virgem — Petrópolis
VII
UM dos primeiros beneditinos a colocar a oração contemplativa como problema ou fator de conflito monástico foi São Gregório Magno. Em seus Diálogos, ele havia, é claro, apresentado São Bento como o modelo carismático da oração perfeita, o pai da comunidade monástica, cujas orações e visão profética orientavam os monges, protegendo-os, tanto espiritual como fisicamente, contra as forças das trevas. São Gregório dá, é evidente, à morte de São Bento, de pé, no oratório monástico, sustentado pelas mãos de seus filhos espirituais, enquanto recebia o Corpo do Cristo, um significado muito profundo e implícito, como o faz, depois dele, a tradição beneditina. Essa morte, que uma moderna autoridade beneditina crê ter ocorrido numa Quinta-Feira Santa, é, em todo caso, tradicionalmente considerada como o acontecimento que coroou uma vida dedicada ao culto litúrgico.
Contudo, não nos devemos esquecer do incidente ainda mais significativo da visão de São Bento, que lhe foi concedida por ocasião de sua habitual oração solitária na cela da torre onde meditava a altas horas da noite, antes que os demais monges se levantassem para cantar as Vigílias. Também esse episódio tem valor simbólico. Mostra São Bento como tipo e modelo de oração solitária, monástica. Qualquer pessoa familiarizada com a tradição monástica reconhecerá imediatamente que não existe um só modelo de santidade de vida de oração monástica que não possua necessariamente esse elemento de contemplação solitária — modelada, ela própria, na oração do Cristo a sós na montanha, à noite.
São Gregório pode ter retratado São Bento em largos traços idealistas, criando, por assim dizer, um ícone do carismático pai dos monges e do homem de oração. Quando, porém, ele considerava sua própria vida, como ele mesmo o faz, de modo muito expressivo, nas “Moralia, in Job”, percebe como se acha dilacerado entre o desejo de seu coração pela contemplação solitária e seu dever de dedicar o tempo e as energias às obras ativas de caridade, como “servo dos servos de Deus”. Dom Cuthbert Butler fez muito bem notar, há vários anos: o modo como São Gregório trata o conflito entre a ação e a contemplação é “um dos aspectos mais fundamentais’ de sua teoria da vida monástica. … Assim sendo, influenciou profundamente a vida beneditina nas épocas subsequentes. Mas não menos profunda tem sido a influência do ensinamento de São Gregório sobre a vida contemplativa e a ativa, incluindo toda vida clerical, de presbíteros seculares e religiosos igualmente, na Igreja do Ocidente.”1
Depois de descrever a vida ativa em termos que bem se poderia esperar, Gregório dá a clássica definição da vida contemplativa que tantas vezes tem sido citada na literatura beneditina e tornou-se quase corriqueira na tradição monástica ocidental. Deve, por isso, mais uma vez ser mencionada :
A vida contemplativa consiste em permanecer com toda a força da mente entregue ao amor de Deus e do próximo; repousando, porém, de todo movimento exterior e unindo-se unicamente ao desejo do Criador. Assim, a mente não terá prazer algum em fazer seja o que for, mas, havendo rejeitado todos os cuidados, poderá inflamar-se na expectativa de ver a face do Criador. E assim já saberá suportar com tristeza o peso da carne corruptível e, com todos os seus desejos, procurar participar da louvação dos coros angélicos, acompanhar os cidadãos do céu e rejubilar-se por sua eterna incorruptibilidade na visão de Deus.2
Temos aqui uma definição da contemplação que parece excluir a atividade, mesmo de natureza espiritual. Digo “parece” excluir a ação. Na realidade, a contemplação deve transcender a ação. Entretanto, este texto, sem nenhuma explicação ou qualificação que o elucide está em contraste com o texto citado acima, das Regras Maiores de São Basílio.
Estamos em face de uma opção entre dois conceitos que, embora possam, talvez, ser conciliáveis, são considerados opostos. Uma ideia ativa da oração: acompanha o trabalho e o santifica. O outro, um conceito contemplativo de oração: para penetrar mais profundamente no mistério de Deus, é preciso “repousar sem ação exterior e unir-se unicamente ao desejo do Criador”.
Essa distinção, concordemos ou não com ela, existe na tradição monástica. A tendência, todavia, tem sido, por vezes, de esquecer completamente o segundo conceito e apresentar a ideia basiliana de “trabalho-com-oração” como o autêntico e único meio realmente praticável de contemplação individual. Por mais bem intencionada que esta “solução possa ser, acaba, de fato, por reduzir a contemplação a um outro aspecto da vida ativa e, portanto, a tratar “atividade-com-oração” como sinônimo de “contemplação”.
Seja o que for que possamos pensar a esse respeito, não é o pensamento de São Gregório. Para Gregório, a vida contemplativa é a vida do céu que não pode ser perfeitamente vivida “neste mundo”. Mas essa vida é concedida aos monges para que antecipem, em certa medida, pela pureza de coração, a “incorruptibilidade” do céu. Contudo, a vida ativa, que é própria à presente existência do homem no mundo, exige sempre a atenção mesmo daqueles chamados à contemplação. Em primeiro lugar, embora (segundo São Gregório) a vida contemplativa seja, em teoria, superior e melhor do que a vida ativa, e deva ser preferida sempre que possível — há épocas em que a contemplação deve ser suplantada pela atividade. Ambas são, em realidade, exigidas pela caridade, uma vez que é ordenado ao homem amar a Deus e também ao irmão. Ambas devem ser, necessariamente, harmonizadas em qualquer vocação terrena, seja no âmbito de uma vida pastoral na Igreja, seja na vida do monge contemplativo.
A única solução para o conflito entre essas duas exigências de nosso coração é conseguir o equilíbrio requerido por nossa vocação própria, individual, na Igreja de Deus. Os que se dedicam à pastoral, não devem negligenciar o necessário elemento de oração e meditação em sua vida. Em teoria, o monge contemplativo deve preferir a contemplação à ação sempre que possa legitimamente fazê-lo. E, quando deixa a contemplação para a ação, deve ser unicamente porque isso é exigido por estrito dever. Pode-se, de fato, dizer que São Gregório incentiva o senso de angústia e conflito ao dizer que o contemplativo deve lastimar a necessidade da ação, mesmo quando esta se coloca como um dever. Embora possa um contemplaplativo estar obrigado pela caridade a aceitar a função de bispo, jamais deve procurá-la. Deve, em realidade, temê-la e procurar evitá-la de todas as maneiras legítimas e razoáveis. Este princípio aplica-se a todos os “negócios seculares” que devem “ser suportados corajosamente por compaixão, nunca, porém, procurados porque os amemos.”3 Aí temos, pois, a teoria de São Gregório.
Vamos admitir francamente que esta maneira de tratar o assunto ação e contemplação parece criar maiores e mais sérios problemas do que resolvê-lo. De fato, São Gregório mencionava apenas o fruto de sua própria experiência num meio particular. Não estava tentando dizer a última palavra sobre este problema.
Contudo, a Idade Média levou terrivelmente a sério as reflexões de S. Gregório. Concluiu que a vocação do monge consistia em ficar em seu mosteiro e rezar. E, quando era convocado a sair do claustro — como acontecia frequentemente — para engajar-se nos negócios da Igreja, esperava-se que o fizesse em prantos e lamentações, o que muitas vezes fazia com sinceridade.
Encontramos, assim, São Bernardo de Claraval, cuja experiência pessoal foi bem semelhante à de Gregório, levantando a questão no século doze e chegando a conclusões bastante semelhantes também. No entanto, lembremo-nos de que, enquanto o Papa São Gregório escreveu não só para monges, mas também para pastores da grei de Cristo (isto é, os bispos), São Bernardo preocupou-se quase unicamente com os monges.
NOTAS