Poesia e Contemplação VI

Thomas Merton — Poesia e Contemplação
Excertos da tradução do Mosteiro da Virgem (Petrópolis)

VI

A TRADIÇÃO cristã primitiva e os escritores espirituais da Idade Média não conheciam nenhum conflito entre a oração “pública” e a “privada”, ou entre a liturgia e a contemplação. Este é um problema moderno. Ou talvez fosse mais exato dizer que se trata de um pseudoproblema. A liturgia tende, por sua própria natureza, a prolongar-se na oração individual contemplativa. E a oração mental, por sua vez, dispõe-nos ao culto litúrgico e nele busca a plenitude.

O capítulo vigésimo da Regra de São Bento fala da “Reverência na oração”. É evidente que trata da oração individual, pessoal, a que o monge se entrega. Menciona uma oração mental (oratio) que é praticada pela comunidade coletivamente, e essa deve ser breve. Omnino brevietur. Em seguida a Regra afirma com toda a naturalidade que o monge pode, individualmente, orar a sós. No capítulo cinquenta e dois, lemos que: “Quando um irmão quiser rezar em particular, não seja impedido pela imoderação de outro. Se também outro, porventura, quiser rezar em silêncio, entre simplesmente e ore, não com voz clamorosa, mas com lágrimas e pureza de coração.”

Voltando ao capítulo vinte, vemos essa oração “secreta” caracterizada por várias expressões tradicionais. É “súplica” com “humildade e com toda a pureza da devoção”. Não a caracteriza o muito falar (non in multiloquio), e sim a pureza de coração e as lágrimas da compunção. Em uma palavra, “deverá ser breve e pura, a não ser que se prolongue pelo impulso da graça divina”.

Este capítulo vigésimo da Regra segue imediatamente o da “Obra de Deus”, ou seja, a oração litúrgica, na qual o monge se mantém na presença do Senhor e dos seus anjos e canta os salmos de maneira que sua mente se harmonize com sua voz.

Essas são, todas, expressões tradicionais e sabemos pelo meio sócio-histórico1 em que foi escrita a Regra e por suas principais fontes, como por exemplo as Instituições e as Conferências2 de João Cassiano, que São Bento está simplesmente expressando a clássica crença monástica de que a oração secreta e contemplativa deve ser inspirada pela oração litúrgica da qual, normalmente, será o acabamento. É muito importante lembrar-se disto. Pois, para São Bento e para os primeiros monges, a liturgia não era considerada em si a “mais elevada forma de contemplação”. Pelo contrário, Evágrio Pôntico, mestre de Cassiano, afirmava que a salmodia era obra da “vida ativa” (bios praktikos), e que se poderia esperar que a oração contemplativa sem palavras feita na pureza do coração sem imagens nem expressões, e até mesmo ultrapassando os pensamentos, desabrochasse da oração “ativa” da liturgia, como sua plenitude “normal”.

Segundo Cassiano, a oração litúrgica explode em muda e inefável elevação da mente e do coração, ao que ele dá o nome de “oração inflamada” — oratio ignita. Aqui, “a mente é iluminada pela infusão da luz divina, sem empregar quaisquer formas humanas cie expressão, mas, com todas as faculdades reunidas numa só unidade, derrama-se copiosamente e clama a Deus de um modo que ultrapassa as palavras, dizendo tanta coisa num breve instante que a mente não consegue relatá-lo mais tarde com facilidade, nem mesmo rememorá-lo ao voltar a si.3 Contudo, é interessante notar como temos aqui a conclusão do comentário de Cassiano sobre o “Pai Nosso”. A “oração inflamada” e simplesmente a fruição normal que explode, pela graça de Deus, quando a oração vocal é bem feita. “A oração do Senhor” (diz Cassiano no mesmo capítulo) “leva todos os que a praticam àquele estado mais elevado e os introduz afinal à oração inflamada (ignita oratio) que é conhecida e experimentada por poucos e é um grau inexprimivelmente elevado de oração.”

Isto pode não ser exatamente o que pensava São Bento. Suspeitamos que o Patriarca do Monte Cassino cogitava de uma espécie de “pureza” muito mais simples e menos extática.

Voltando-nos para Evágrio, podemos citar uma clássica sentença sobre a oração do que está progredindo e “se aproxima da verdadeira teologia”. Nesta oração, sabemos que estamos “próximos”, “quando o entendimento, num ardente amor de Deus, começa pouco a pouco a deixar atrás de si a carne, lança para longe de si todos os pensamentos que vêm dos sentidos, da memória ou do temperamento, enquanto, ao mesmo tempo, se vê repleto de alegria e respeito”.4

Cassiano e Evágrio não pertencem à tradição beneditina. Acham-se, porém, em suas fontes como o está igualmente São Basílio, que pode aqui ser citado.5

Aliás, São Basílio é muito prático6 ao tratar da oração. Preocupa-se mais com a organização da vida de oração do asceta ou com a estrutura da Liturgia das Horas do que com a oração individual. Deve-se notar em todo caso que as chamadas “Regras” de São Basílio são diretórios espirituais para comunidades de ascetas, cie caráter propositadamente diverso do monaquismo cenobítico e eremítico do Egito. Basílio pensa mais numa vida religiosa que, hoje em dia, chamaríamos “ativa” e reage de maneira sistemática e explícita contra o caminho puramente contemplativo, ascético e solitário dos monges do Egito. Os ascetas, discípulos de Basílio, mantêm maior contato, se não com o “mundo”, certamente, pelo menos, com a comunidade cristã a que servem, em certa medida, por obras de caridade e misericórdia.

Basílio, portanto, não está interessado em advogar longas horas de contemplação como está em desencorajar um apetite pela contemplação que, se interferisse com o trabalho e os deveres normais da vida, ele consideraria desordenado.

A oração individual é para Basílio, portanto, lima oração que é mantida enquanto o asceta está trabalhando ou se ocupando de seus deveres ordinários.

Para a oração e a salmodia, toda hora é conveniente, de maneira que, enquanto nossas mãos estão ocupadas com suas tarefas, é possível louvar a Deus, por vezes com a boca, ou então, com o coração. … Assim, em meio a nossos trabalhos, podemos realizar o dever de orar, dando graças Àquele que deu forças a nossas mãos para executar nossas tarefas e inteligência a nossas mentes para adquirir o conhecimento. … Conseguimos, assim, um espírito recolhido quando, em cada ação, suplicamos ao Senhor o êxito de nossos labores e satisfazemos a dívida de nossa gratidão para com ele… e quando conservamos em nossas mentes o desejo de Lhe agradar.7

Depois disso, Basílio fala da oração comunitária, a Liturgia das Horas. Podemos ver aqui como a ideia de São Basílio concernente à oração se enquadra no contexto do que é tradicionalmente conhecido como a vida ativa. Não se trata aqui da theoria ou da theologia de Evágrio Pôntico, nem é tampouco a Hesychia8 dos contemplativos bizantinos que, embora fossem sem dúvida filhos espirituais de Basílio, se aproximavam mais da tradição dos monges do Sinai do que das Regras Maiores.

Evidentemente, Basílio trata do trabalho manual que pode facilmente unir-se a qualquer forma de oração. Mas que dizer das ocupações mais aptas a “distrair”, como, por exemplo, o ministério apostólico?


NOTAS


  1. N. da T. — “Background”, no original. 

  2. “Colações” em linguagem monástica por serem lidas depois da “colação”, ou ceia frugal dos monges no fim do dia. 

  3. Conferência 9, Cap. 24. 

  4. De Oratione, n. 61. 

  5. N. da T. — São Basílio Magno é um dos grandes doutores da Igreja do Oriente. Estudou letras e, algum tempo depois, tornou-se “asceta”, ou monge. Escreveu várias diretivas para seus discípulos, codificadas em dois volumes: Regras Maiores e Regras Menores. Uma das suas características é o serviço do próximo em obras de caridade fora do recinto do Mosteiro. Foi mais tarde sagrado bispo. Morreu aos 49 anos, em 379. Deixou importantes escritos. Era natural da Capadócia. 

  6. N. da T. — “Businesslike” no original. 

  7. Long Rules, Q. 37 — Ascetical Works (N. York, 1950), página 308. 

  8. N. da T. — Para o Hesicasmo e os hesicastas cf. Questões Abertas, por Th. Merton, Livraria AGIR Editora, Rio, nota na pág. 93.