JEAN-CLAUDE LARCHET — O PODER IRASCÍVEL DA ALMA
Excertos traduzidos de TRATAMENTO DAS DOENÇAS ESPIRITUAIS
A potência agressiva ou irascível da alma pertence à natureza própria do homem, sendo uma das componentes da alma desde sua criação.
A primeira função da agressividade no homem, em seu estado original de saúde (o Adão original e o homem restaurado em Cristo), é de se opor a tudo aquilo que pode desviá-lo de Deus e do caminho da deificação ao qual Deus o destinou por natureza. Esta faculdade, segundo os Padres, foi posta por Deus na alma do homem para lhe permitir lutar contra o mal (kakon), mais precisamente rechaçar os ataques dos demônios, combater as tentações, refutar e destruir os maus pensamentos que seus inimigos espirituais lhe sugerem.
Através desta faculdade utilizada conforme a sua natureza original, que o homem espiritual, afastando todos os obstáculos, pode se manter sem desvios no caminho para sua união com Deus. Graças à ação desta potência irascível que o homem pode sustentar seu desejo sempre tencionado para Deus, impedindo-o de se desviar para as realidades sensíveis onde a tentação busca enredá-lo.
Graças ao combate que o homem espiritual sustenta com a ajuda de sua potência agressiva que ele pode se guardar puro espiritualmente. Esta potência se apresenta particularmente útil na oração, quando para alcançar uma contemplação pura, o homem deve rechaçar todos os pensamentos que buscam afastá-lo de Deus.
A agressividade bem utilizada, resistindo à prova da tentação, revela a medida e o valor verdadeiro de sua relação original a Deus.
O segundo uso natural e normal da potência agressiva é de permitir ao homem lutar para obter bens espirituais, aos quais tende por natureza; de permiti-lo alcançar o Reino dos Céus ao qual está destinado, mas que segundo as palavras do Cristo: “(Mt 11:12) E desde os dias de João Batista, até agora, o reino dos céus é tomado por violência, e são os violentos que deles se amparam”; “(Lc 16:16) A lei e os profetas vigoraram até João; desde então é anunciado o evangelho do reino de Deus, e todo homem usa de violência para entrar nele.”. A potência irascível lhe faculta, portanto, as condições necessárias para praticar todos os esforços para realizar a tarefa que lhe cabe, crescer espiritualmente e obter a semelhança de Deus.
A potência agressiva quando exercita-se de todas essas maneiras toma a forma de uma cólera virtuosa, sábia e santa, aquela que o salmista recomenda fazer uso quando diz: “Salmos 4:4 Irai-vos e não pequeis; consultai com o vosso coração em vosso leito, e calai-vos.”
Pelo pecado, no entanto, o homem perverteu esta faculdade, desviando-a deste uso normal e bom para fazer um uso contra natureza e irracional. Assim a faculdade tornou-se doente, em lugar de combater para obter e guardar os bens espirituais, ela luta, todavia, para adquirir e conservar os pseudo-bens sensíveis e àqueles que se identificou por desejos. Põe-se inteiramente a serviço dos desejos sensíveis que animam o homem caído e se consagra à busca e à conservação do prazer que a eles se associa. Os Padres fazem alusão frequente à relação fundamental que existe entre a agressividade e o prazer.
A experiência do prazer sensível é seguida inevitavelmente por aquela da dor, física, mas também sobretudo psicológica e moral. Por esta razão, no homem caído a potência irascível é utilizada não só para lutar com vistas a obter e preservar o prazer, mas também para fugir da dor, para evitar de uma maneira geral todo desprazer e todo sofrimento.
A realização desta finalidade contra natureza implica em uma segunda forma de perversão da potência irascível. Deixando de utilizá-la para combater os demônios e suas tentações posto que aquiesce a suas sugestões e realiza a vontade deles, o homem a direciona contra seus semelhantes à medida que os encara seja como obstáculos à realização de seus desejos sensíveis e à obtenção dos prazeres que os desejos visam, seja como causas do sofrimento relativo ao amor egoísta que porta em si mesmo.
Os Padres são unânimes em salientar ainda o caráter contra natureza e irracional deste uso da potência irascível que corresponde a uma verdadeira perversão desta faculdade, desviada de sua finalidade natural e normal e redirecionada para uma meta que lhe é contrária. A loucura suprema é seu uso indevido para se pôr contra Deus, quando originalmente era um auxílio para se manter próximo a Deus.