Peter Brown (SAB:113-118) – Agostinho e Plotino

Brown, Peter Robert Lamont. Santo Agostinho, uma biografia. Tr. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 113-118


Entre os tratados de Plotino, é bem possível que Agostinho tenha lido um texto curto, intitulado Sobre a beleza. Este há de tê-lo afetado intimamente, pois versava sobre um tema a respeito do qual ele havia escrito, sete anos antes, no De pulchro et apto, e, nos parágrafos iniciais, [114] Plotino descartava a teoria específica da beleza que Agostinho havia defendido. A partir desse início desconcertante, a entusiástica exposição plotiniana deve tê-lo arrastado para o cerne do sistema platônico: “A mais sublime beleza que ainda possa haver, nossa argumentação há de trazer à luz.”

Plotino começou questionando o óbvio: “(…) Que atrai o olhar daqueles a quem se apresenta algo de belo (…)?

“Quase todos declaram [como fizera o próprio Agostinho] que a simetria das partes entre si e em relação a um todo (…) constitui a beleza reconhecida pelo olhar, e que, nas coisas visíveis, como a rigor em tudo o mais, universalmente, o belo é essencialmente simétrico, padronizado.

“Mas, refleti sobre o que isso significa. (…) Todo o encanto das cores e até da luz do Sol, sendo desprovido de partes e, portanto, não belo segundo a simetria, deve ser excluído desse reino da beleza. E como vem o ouro a ser algo de belo? E o relâmpago noturno e as estrelas, por que são tão belos?

“Ademais, já que o rosto de simetria constante ora se afigura belo, ora não, podemos nós duvidar de que a beleza é algo mais que a simetria, e de que a própria simetria deve sua beleza a um princípio mais remoto?”

Essa nova maneira de ver as coisas, defendida de modo persistente e apaixonado por Plotino, causou profunda impressão em Agostinho. Em suas Confissões, ele escreveu um resumo monumental dessa linha de pensamento, em sua própria linguagem mais sóbria e direta.

“Pois eu me indagava como podia apreciar a beleza nas coisas materiais (…) e o que é que me tornava capaz de formular julgamentos corretos sobre as coisas mutáveis, dizendo que isto devia ser assim, aquilo não devia ser assim. Perguntava-me como podia ser capaz de julgá-las dessa maneira, e assim percebi que, acima de minha inteligência sujeita à mudança, havia a imutável e verdadeira eternidade da verdade. (…)

“O poder da razão, ao perceber que também em mim era passível de mudança, levou-me a considerar a fonte de seu próprio entendimento. Afastou-me o pensamento de suas cogitações habituais (…), para desvendar qual era a luz que o esclarecia quando proclamava, sem a menor sombra de dúvida, que o imutável era superior ao passível de mudança, e de onde provinha seu conhecimento do próprio imutável. Pois, a menos que de algum modo conhecesse o imutável, não poderia estar seguro de ser [115] este preferível ao mutável. E foi assim que, num instante de assombro, minha mente logrou a visão do Deus que e.”

Agostinho insistiría nessa linha de pensamento. Em poucos meses de leitura dos textos platônicos, descrevê-la-ia a Nebrídio como o “argumento excepcionalmente conhecido”.

Pois o que havia obcecado Plotino fora o contraste entre o mutável e o imutável. No “aqui” do mundo conhecido por seus sentidos, ele era assediado pela qualidade intemporal de um “lá” extramundano, que sua mente era capaz de captar com segurança permanente, ao julgar qualidades como a bondade e a beleza. Esse outro mundo proporcionava a base do mundo dos sentidos. Infundia no espetáculo passageiro das coisas materiais uma intensidade e uma permanência que elas não poderíam possuir por si mesmas. Pois as coisas conhecidas pelos sentidos também podiam ser julgadas “boas” e “belas”, e, ao perceber nelas essa característica, Agostinho passou a vê-las com os olhos de um platônico, ou seja, como dependendo de princípios eternos em sua existência.

Por que era tão superficial, tão efêmera a beleza do mundo físico, por que constituía ela uma depauperação tão entristecedora, um “esgotamento” de uma fonte “interna” e concentrada de beleza, acessível apenas a seu espírito? Era esse o problema que Plotino havia julgado compartilhar com os filósofos de todas as eras. Para ele, a própria alma espelhava esse processo de esvaziamento. É que a alma “caía”: perdia o contato com sua atividade mais profunda e buscava no mundo externo a beleza que já não conseguia encontrar em si. Portanto, o mundo transitório dos sentidos impunha-se à atenção da alma; esta, “decaída”, sobrecarregava este mundo de uma concretude especiosa, ao se concentrar muito estreitamente nele em detrimento dos ecos profundos e esquivos de sua própria beleza interior. Aquilo que podia ser “internamente” apreendido, intacto e simples num instante de discernimento, tinha que ser dolorosamente buscado no mundo externo, vez após outra, em todos os níveis da atividade mental. Era tateantemente buscado pelos processos longos e prosaicos do raciocínio discursivo. Era também exteriorizado pelo artista, em sua luta para impor uma forma duradoura à pedra material e transitória de uma estátua. Até o estadista, ao impor a ordem a sua cidade, era, para Plotino, mais um desses filósofos falhos, pois também buscava no mundo mutável que lhe era externo uma satisfação que somente seu mundo interior podia oferecer.

[116] O universo de Plotino, portanto, tinha um centro que a mente mal conseguia tocar: “Tudo flui, por assim dizer, de uma só fonte, que não se deve conceber como um sopro ou um calor, mas como uma qualidade que engloba e salvaguarda todas as qualidades — a doçura com a fragrância, a qualidade do vinho e os sabores de tudo o que se pode provar, todas as cores visíveis, tudo o que o tato conhece, tudo o que o ouvido pode escutar, todas as melodias, todos os ritmos.”Se o que vemos à nossa volta seria uma comunicação desintegrada dessa concentração do todo. E como se um artista, confrontado com a execução de um único tema, perdesse sua “segurança”: ele se tornaria cada vez mais difuso, mais literal; a intensidade inicial desaparecería. A visão ter-se-ia dispersado, mas era justamente a visão que ele se esforçava por transmitir.

O sentimento pungente de que o homem comum, preso ao mundo óbvio dos sentidos, move-se na penumbra e de que o saber que ele afirma possuir é meramente o estado obscuro e derradeiro de uma progressão inelutável de estágios decadentes de consciência é a marca da visão ploti-niana do universo. No entanto, esses estágios decadentes têm uma estreita relação entre si: cada qual depende de um estágio “superior”, pois esse estágio “superior” lhe é fundamental como fonte de sua consciência. 0 estágio “inferior” é diferente de seu predecessor. Não pode “conhecê-lo”, do mesmo modo que um homem de raciocínio literal nunca é realmente capaz de apreender o pensamento de um homem intuitivo. Instintivamente, porém, cada estágio procura completar-se, “tocando” em seu superior, fonte alheia mas aparentada de sua própria consciência. Assim, a difusão exteriorizante do Um coincide com um esforço contínuo de todas as partes para “retornar” à fonte de sua consciência. Esse esforço de completude é o que vincula diretamente o Um a cada manifestação de Sua intensidade e, sobretudo para Plotino e seu discípulo Agostinho, à mente humana que anseia por se completar.

É essa, em termos sucintos, a doutrina neoplatônica da “procissão” para fora, e de seu corolário, o “voltar-se” para dentro. Essa era uma ideia tão básica para o pensamento da época de Agostinho quanto é, para a nossa, a ideia da evolução. Ela unia pensadores pagãos e cristãos num único horizonte de ideias. Para Plotino, o Intelecto era um Princípio Mediador de suprema importância: ao “tocar” no Um, ele se voltava para fora, ao mesmo tempo, como fonte do Muitos. Era fácil ver nesse [117] Princípio Mediador fundamental uma exploração filosófica do “Verbo” do Evangelho de São João, e era assim que Plotino era lido pelos cristãos cultos de Milão: “(…) Nestes li — não, é claro, com estas exatas palavras, embora o sentido fosse o mesmo e corroborado por toda sorte de argumentos diferentes — que ‘no princípio era o Verbo, e o Verbo existia em Deus e Deus era o Verbo (…)·”

“Os livros também nos dizem que Vosso Filho Unigênito permanece para sempre convosco na eternidade, imutável antes de todos os séculos e para além de todos os séculos; que de Sua plenitude nossas almas recebem sua parcela e dela derivam sua bem-aventurança; e que são renovadas pela participação na Sabedoria que nelas permanece e que é a fonte de seu saber (…).”é0

Agostinho leu os livros dos platônicos quando ainda se desligava dos modos de pensar que o tinham levado a favorecer os maniqueístas. Havia considerado impossível, por exemplo, pensar em Deus como presente nele e, ao mesmo tempo, separado. Como maniqueísta, ele havia privilegiado uma resposta particularmente drástica a esse problema: o indivíduo fundia-se inteiramente com a “substância” de um Deus bondoso, e tudo o que não pudesse ser identificado com esse fragmento de perfeição era cindido como absoluta e irredimivelmente maléfico. Plotino pôde ajudá-lo a sair de seu dilema. Um de seus mais laboriosos tratados fora dedicado a transmitir a ideia de que o mundo espiritual era fundamental para o mundo do lugar e do tempo, embora continuasse distinto dele. Ainda mais importante para Agostinho, Plotino havia afirmado, ao longo de todo o texto das Enéadas, constante e apaixonadamente, que o poder do Bem sempre mantinha a iniciativa: o Um fluía para fora, tocando em tudo, moldando e dando sentido à matéria passiva, sem ser violado ou diminuído de nenhum modo. A faceta mais sombria da visão maniqueísta do mundo — a convicção de que o poder do Bem era essencialmente passivo, de que ele só podia suportar a invasão violenta de uma força maléfica ativa e poluidora — foi eloquentemente refutada por Plotino: “O Mal não existe sozinho: em virtude da natureza do Bem, do poder dò Bem, ele não é apenas Mal: aparece necessariamente atado por correntes de Beleza, como um prisioneiro acorrentado por grilhões de ouro: e se oculta sob estes, a fim de que, embora deva existir, não seja visto pelos deuses, e de que os homens nem sempre precisem tê-lo diante dos olhos, mas de que, [118] quando o Mal lhes aparecer, eles não fiquem desprovidos de imagens do Bem e do Belo das quais se recordar.”

É que o universo de Plotino era um todo contínuo e ativo, que não podia admitir clivagens brutais e irrupções violentas. Cada um de seus seres extraía força e sentido de sua dependência desse continuum vivo. Assim, o mal era apenas uma guinada para a separação: sua própria existência presumia a existência de uma ordem que era desdenhada, mas continuava não menos real e provida de sentido. A parte voluntariosa é que era diminuída, ao perder o contato com algo maior e mais vital do que ela mesma.

Essa visão do mal superpõe-se à elaboração posterior de Agostinho, sem coincidir com ela. Mas Plotino fora provocado por um desafio similar (havia escrito contra os gnósticos cristãos, ancestrais espirituais diretos dos maniqueístas); e, para um ex-maniqueísta como Agostinho, suas ideias foram mais do que suficientes para provocar uma drástica mudança de perspectiva.

Essa revolução é o que talvez constitua o resultado mais profundo e duradouro da absorção agostiniana do neoplatonismo. Ela não fez nada menos do que deslocar o centro de gravidade da vida espiritual de Agostinho. Ele não mais se identificou com seu Deus: esse Deus era completamente transcendental — Sua natureza separada tinha de ser aceita. E, ao se dar conta disso, Agostinho teve de admitir que também ele era separado e diferente de Deus: “Percebi estar muito longe de Vós, numa terra em que tudo Vos era dessemelhante, e ouvi Vossa voz a me dizer: ‘Sou o pão dos homens maduros. Cresce e te alimentarás de mim. Mas não Me transformarás em ti (…), tu é que te mudarás em Mim.”’67

Assim como não mais podia identificar-se com o bem, Agostinho não mais podia rejeitar tudo o que não ficasse à altura de seus ideais como uma força maléfica absoluta e agressiva. Foi-lhe possível distanciar-se: o sentimento de estar íntima e passivamente envolvido em todo o bem e todo o mal do mundo deu lugar, sob a influência dos livros platônicos, a uma visão de que o mal era apenas um pequeno aspecto de um universo muito maior, muito mais diferenciado, de finalidades mais misteriosas e com um Deus muito mais elástico que o de Mani. “(…) Eu já não desejava um mundo melhor, pois que pensava na criação como um todo: e, à luz desse discernimento mais equilibrado, via que as coisas superiores eram melhores que as inferiores, mas a soma de toda a criação valia mais do que as coisas superiores, tomadas isoladamente.”