Brown, Peter Robert Lamont. Santo Agostinho, uma biografia. Tr. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 110-113
Um século antes, havia-se redescoberto a doutrina autêntica de Platão: as nuvens se haviam desfeito e este, que era o ensinamento “mais refinado e esclarecido” da filosofia, pudera reluzir com todo o seu brilho nos textos de Plotino — uma alma tão próxima de seu antigo mestre que, nele, Platão parecia reviver. Esses homens chegavam mesmo a ter sonhos em que os filósofos lhes expunham “máximas platônicas” durante seu sono. Damos a esse movimento o nome de “neoplatonismo”, porém os participantes davam-se o nome de “platônicos” — Platonici puros e simples, ou seja, herdeiros diretos de Platão.
Plotino, um grego egípcio, havia lecionado em Roma e falecido em 270. Seus discursos difíceis e alusivos, hoje conhecidos como Enéadas, foram organizados por seu discípulo Porfírio, também grego, proveniente de Tiro. Eram dois homens muito diferentes. Plotino fora um amador: um homem sumamente intuitivo, que debatia com intensidade mas de maneira obscura entre acadêmicos estéreis. Aborrecia seus alunos ao insistir em esquadrinhar cada problema por seus próprios méritos, à medida que ele surgia, durante dias a fio, se necessário, em vez de lhes dar a série costumeira de aulas prontas sobre os sistemas filosóficos. Sendo homem de extremo desprendimento, um dia Plotino havia chocado e encantado seus escrupulosos amigos ao lhes dizer, a propósito de um festejo religioso, que “Cabe a esses seres virem a mim, e não a mim ir até eles”.
Porfírio, ao contrário, era um acadêmico de formação rigorosa, a quem Agostinho sempre chamou de “doctissimus” e de “o mais notável dos filósofos pagãos”. Porfírio transformou a descoberta plotiniana de Platão em manuais didáticos e construiu a partir deles um sistema coerente, intensamente religioso e extramundano. Foi o primeiro teólogo sistemático na história do pensamento. O título de um de seus livros perdidos, que gozava de grande popularidade na época, “De Regressu Animae”, “Ο retorno da alma (ao Paraíso)”, bem podería ser o lema da vida religiosa de Milão: trata-se de um lema resumido num verso que Mânlio Teodoro escreveu para sua irmã, uma freira sepultada na Basílica Ambrosiana: “Alguém que, não tendo um só pensamento sobre coisas mortais em sua mente mortal, sempre amou a estrada que conduz ao Paraíso.”
[111] Diversamente de Plotino, Porfírio era um homem inquieto e inconstante. Sentira-se atraído pelo cristianismo e, mais tarde, escrevera Contra os cristãos, livro pelo qual ganhara má fama no século seguinte. Aos 70 anos, esse autor de um tratado Sobre a abstinência, que um dia “concebera um ódio pelo corpo humano”, de repente desposara uma viúva, mãe de oito filhos. Durante sua vida inteira ele se incomodara com a insuficiência de uma busca puramente racional de Deus. Estudara informalmente uma coletânea de enunciados de médiuns, os chamados “oráculos caldeus”, e, em certa época, tivera a esperança de encontrar, em fenômenos tão distintos quanto sessões de espiritismo e iogues indianos, um “caminho universal” que viesse a libertar a alma.
Voltando os olhos para esses dois homens, Agostinho viu em Plotino um espírito grandioso e impessoal, “que extraiu o sentido oculto de Platão”. Ele e seus contemporâneos, tanto pagãos quanto cristãos, sentiam-se muito mais próximos das inquietações de Porfírio. Este parecia ser um microcosmo das tensões dos intelectuais pagãos sérios. Agostinho o apresentaria como uma figura semelhante a Fausto, com um sentimento premente da necessidade de um libertador divino da alma, o qual estivera na má companhia do fascínio pelo oculto.
Mas os novos conhecidos de Agostinho pertenciam a uma era diferente da desses dois gregos pagãos. Em Milão, grande parte do platonismo desenvolto e elegante era cristão. Essa mudança, sumamente significativa, tivera início em Roma, em meados do século. Ali, um professor africano de retórica, Mário Vitorino, ligara-se subitamente à Igreja cristã. Havia também traduzido Plotino e outros escritos neoplatônicos para o latim. Assim, os livros que a tradução colocara à disposição de homens menos instruídos, como Agostinho, tinham sido fornecidos por um homem que sabidamente morrera como cristão. Vitorino havia inclusive conhecido um padre milanês, Simpliciano, que a essa altura era um homem idoso e experiente. Como Simpliciano parecia haver orientado os estudos teológicos de Ambrósio, o bispo católico da cidade tinha ficado ao alcance desse movimento, e Simpliciano, como “pai espiritual” de Ambrósio, passara a funcionar como a eminência parda de uma tentativa extremamente audaciosa de combinar o platonismo com o cristianismo.
Como todos os movimentos instigantes e autoconfiantes, esses platônicos cristãos tinham sua própria visão do passado, uma visão que, em [112] retrospectiva, parece ingênua e bizarra, mas que foi capaz de descortinar horizontes intrigantes para Agostinho. Após uma longa vida esotérica, a filosofia de Platão, reconciliada com a de Aristóteles, havia despontado como “a única cultura filosófica absolutamente verdadeira”. Para um platônico cristão, a história do platonismo parecia convergir muito naturalmente com o cristianismo. Ambos apontavam na mesma direção. Ambos eram radicalmente extramundanos. Cristo dissera: “Mew Reino não é deste mundo”·, Platão dissera a mesma coisa sobre seu reino das ideias. Para Ambrósio, os seguidores de Platão eram os “aristocratas do pensamento”.
Era nesse movimento que Agostinho estava prestes a ingressar. Tratava-se de um movimento com traços distintivos entre os que falavam latim. No Ocidente, o platonismo tornara-se uma filosofia para amadores: muitas vezes, as obras dos platônicos eram lidas apenas em traduções, como viria a fazer Agostinho. Vitorino e Agostinho tinham semelhanças notáveis: ambos eram produto de uma cultura exclusivamente literária; para ambos, a filosofia era um interesse “externo”, que se aprofundava pari passu com seu interesse pela religião. Aos dois faltavam a cautela e a exclusividade dos professores estabelecidos de filosofia, como os que continuavam a existir em Atenas e Alexandria. Como fizera Cícero antes deles, esses amadores latinos nunca se comprometiam por completo com as ideias que manipulavam. Sentiam, por mais que isso lhes fosse obscuro, que havia mais na vida do que os sistemas metafísicos, e, tal como Cícero, quer fossem católicos, quer pagãos, tentavam conciliar as ideias que haviam recolhido nos gregos com a religião tradicional de seus ancestrais.