Peter Brown Origenes Castidade

Peter BrownOrígenes e a questão da castidade

Havia uma crença muito difundida de que Orígenes fazia o que dizia. Sempre se afirmou a respeito dele que, quando rapaz de cerca de vinte anos, por volta de 206, ele fora discretamente a um médico para se mandar castrar. Na época, a castração era uma operação rotineira. Os que apoiavam Orígenes estavam dispostos a acreditar que ele passara por essa operação, a fim de evitar os boatos difamatórios sobre a intimidade de que ele desfrutava com as mulheres que eram suas pupilas espirituais. Duas gerações antes, um jovem alexandrino se dispusera a fazer a mesma operação, pelas mesmas razões.

Quando, na qualidade de sacerdote em Cesaréia, Orígenes pregou contra os que interpretavam com demasiada literalidade as palavras de Cristo, na ocasião em que Ele abençoara os que se haviam tornado eunucos em nome do reino dos céus, tratou a questão de maneira tão serena a ponto de revelar um abismo entre as platéias do século III e nós. Dadas as vividas fantasias que cercavam o eunuco adulto, está longe de ser certo que todos acreditassem que Orígenes havia obtido imunidade contra as tentações sexuais através dessa operação. A castração pós-púbere simplesmente tornava o homem infértil; não era, por si só, uma garantia de castidade. O que Orígenes talvez buscasse, na época, era algo mais profundamente perturbador. O eunuco era célebre (e, para muitos, repulsivo) por ter ousado deslocar a fronteira maciça entre os sexos. Optara por deixar de ser homem. Ao perder o “calor” sexual que supostamente fazia crescer os pêlos de seu rosto, o eunuco deixava de ser reconhecível como homem. Era um ser humano “exilado de ambos os sexos”. Desprovido da credencial profissional padronizada dos filósofos nos círculos da antigüidade recente — a longa barba pendente —, Orígenes há de ter aparecido em público com o rosto liso, qual uma mulher ou um menino cristalizado num estado de inocência pré-púbere. Era uma lição viva da indeterminação fundamental do corpo.

Esse corpo não tinha que ser definido por seus componentes sexuais, e menos ainda pelos papéis sociais convencionalmente derivados de tais componentes. Ao contrário, o corpo devia funcionar como um brasão da liberdade do espírito. A alma de João Batista fora tão imensa a ponto de fazer seu corpo minúsculo saltitar no ventre da mãe. O corpo de um espírito assim grandioso deveria necessariamente ter permanecido virgem. Rejeitar o casamento e qualquer tipo de atividade sexual era deixar claro o “destino manifesto” do espírito ardoroso. A virgindade preservava uma identidade já formada numa existência anterior, mais esplêndida e destinada a uma glória ainda maior.

De um só golpe, a continência deixou de ser o que fora essencialmente na Igreja Primitiva — uma questão pós-conjugal para pessoas de meia-idade. Na verdade, Orígenes fora incomum em seu engajamento precoce como cristão, bem como no fascínio que exerceu sobre os jovens de Alexandria nos primeiros anos de sua carreira. Seus primeiros anos em Alexandria nos fornecem um raro vislumbre de algo semelhante ao radicalismo de uma “cultura da juventude” funcionando numa igreja mais comumente dominada por sóbrios anciães.