Peter Brown Origenes

Peter Brown — Corpo e Sociedade
The Body and Society: Men, Women, and Sexual Renunciation in Early Christianity; Twentieth Anniversary Edition with a New Introduction (Columbia Classics in Religion)

Excelente análise da concepção de corpo na sociedade antiga greco-latina e de sua metamorfose ao longo da institucionalização do cristianismo.

Excertos:

  • ORIGENES ALMA
  • ORIGENES CORPO
  • ORIGENES CASTIDADE
  • ORIGENES VIRGINDADE
  • ORIGENES AISTHESIS

    Entre maio de 200 e meados de 203, Leto, o augusto Prefeito do Egito, recolheu um grupo de cristãos de Alexandria e do Egito propriamente dito. O pai de Orígenes estava entre eles. Orígenes tinha, na época, dezesseis ou dezessete anos, sendo o filho mais velho de uma família de sete irmãos. Sua mãe escondeu suas roupas, por medo de que ele corresse ao encontro do pai, apresentando-se às autoridades. “Era”, escreveu Eusébio de Cesareia um século depois, “uma extraordinária ambição em alguém tão jovem.” Orígenes entrou na idade adulta endurecido pela proximidade da morte. Para ele, a tensa antítese entre a paternidade “verdadeira” e a “falsa”, o contraste entre continuidades criado pela orientação espiritual e pela mera reprodução física, tão corriqueiro nos círculos de ensino cristãos do século II, tornou-se uma dura realidade da vida. A lealdade do rapaz a um pai que tanto esperara dele foi arrancada de seu curso normal pelo golpe brutal da execução. Toda a continuidade, toda a fidelidade que Orígenes passou então a desejar encontrava-se nos vínculos mais sutis e mais duradouros de alma para alma, criados entre um mestre e seus discípulos dentro da igreja cristã.

Estabelecido em Alexandria, Orígenes tornou-se guia espiritual em idade sumamente precoce. Um núcleo de jovens cristãos comprometidos e de convertidos recentes gravitava em torno do brilhante jovem mestre e “filho de mártir”. Quando a perseguição tornou a ser deflagrada, entre 206 e 210, o grupo ao redor de Orígenes mostrou uma surpreendente capacidade de recuperação. O clero alexandrino desapareceu discretamente, deixando a Orígenes a tarefa de manter o moral de seus pupilos espirituais. Enfrentando a turba hostil — um ato de coragem nada insignificante numa cidade famosa por sua lei de linchamento —, o jovem professor se adiantou para depositar em seus “filhos” espirituais o beijo solene que declarava que eles se haviam tornado dignos da morte de seu mártir.

Sabemos surpreendentemente pouco, a partir das obras do próprio Orígenes, sobre a tessitura dos demais quarenta anos de sua vida em Alexandria e em outras regiões. Sua carreira de professor em Alexandria encerrou-se em 234, com o virtual exílio e transferência de sua escola para Cesareia, na costa marítima da Palestina. Ali ele lecionou e pregou regularmente como sacerdote, expondo as Escrituras Sagradas na igreja, até vir a falecer, aproximadamente em 253-254, em decorrência das torturas que lhe tinham sido infligidas no ano anterior na prisão de Cesareia.

Com Clemente, tínhamos sido estimulados a examinar à nossa volta todos os detalhes da vida dos cristãos numa grande cidade; com Orígenes, esse mundo atarefado desaparece: já respiramos o ar imutável do deserto. O tempo se detém num Sinai espiritual em que, por quarenta anos, Orígenes, o exegeta, extrai das Escrituras o doce alimento dos anjos. Orígenes se considerava acima de tudo um exegeta. Voltando-se para a imutável Palavra de Deus, empenhou-se em alcançar uma tranquilidade de ícone, em manter seu semblante firme diante do povo? Sendo um homem cujo coração ardia com o fogo oculto das Sagradas Escrituras, a erudição pausada e atemporal de Orígenes trouxe um sopro de imutabilidade às comunidades cristãs de Alexandria e Cesareia, no exato momento em que essas comunidades começavam a avançar precipitadamente para uma nova era de prosperidade, repleta de oportunidades de contemporização com o mundo e marcada pela recriminação intelectual e pela busca flagrante de poder em meio ao clero. O que lhe granjeou a admiração dos intelectuais cristãos de todos os séculos posteriores não foi tanto o que Orígenes ensinou, por mais excitante e amiúde perturbador que isso pudesse ter sido; foi a maneira como, na qualidade de exegeta e guia espiritual, Orígenes apresentou a vida de um mestre cristão como algo suspenso acima do tempo e do espaço. Foi isso que o tornou um modelo de papel, um “santo” da cultura cristã, um homem passível de ser aclamado, um século depois, como “o estímulo de todos nós”.

Desde o princípio, a mensagem de Orígenes foi clara e confiante: “Eu vos suplico, portanto, que vos transformeis. Decidi-vos a saber que há em vós uma capacidade de vos transformardes.” (Nessa frase, podemos efetivamente ouvir a fala de Orígenes: ela foi extraída do registro taquigrafado de uma discussão entre Orígenes e um grupo de bispos meio perplexos, que sobreviveu num papiro descoberto em Tura, ao sul do Cairo, em 1941.)

Em torno do ano de 229/230, Orígenes sentiu-se livre para se dedicar a seu livro mais notável, o Peri Archôn, Dos Princípios. Estava então no final da casa dos quarenta, idade em que um filósofo sério era considerado suficientemente ancorado em décadas de meditação e de experiência direta da orientação espiritual oral (além de haver suscitado críticas suficientes entre seus colegas) para que valesse a pena investir seu tempo em colocar seus pensamentos no papel. Nesse livro, ele aproveitou a oportunidade para explicitar seus pressupostos sobre a posição dos seres humanos no universo, que tinham estado subjacentes a sua alquimia pessoal como exegeta e norteador de almas.