Paulo — Deus Desconhecido
Roberto Pla
Em sua introdução ao Evangelho de Tomé, Roberto Pla analisando a justa hermenêutica para sua compreensão e também das Escrituras em geral, AT e NT, aborda duas etapas que denomina: atualização indireta e atualização direta (v. Sentidos das Escrituras). Para melhor esclarecer esta última toma como exemplo o que considera sua enunciação no texto do discurso que segundo conte Lucas nos Atos, Paulo dirigiu aos atenienses no Areópago.
Paulo pretende falar naquela ocasião do “Deus desconhecido” assim mencionado pelos atenienses em uma inscrição diante de um altar. Argumenta Paulo que esse Deus, desconhecido porque é oculto, se revelou em Cristo vivo, preexistente, eterno, no Senhor verdadeiro que não habita “em templos fabricados por mão de homem” (Atos 17, 22-28).
O templo no qual Deus vivo, verdadeiro, põe sua morada em cada homem que vem ao mundo, é o corpo (a “carne” psicofísica), segundo foi dito.
*Jo 1,9; esta é a Palavra, d aluz verdadeira, que ilumina a todo homem. Quanto a o de ser o campo esse templo, se diz em Jo 2,21-22. Talvez poderia se arguir que não só o corpo senão o homem psicofísico.
Tal templo não foi fabricado por mão de homem, e seu hóspede sagrado e desconhecido é o Deus vivo, imanente e transcendente ao mesmo tempo, que há que buscar e que pode ser encontrado pelo procedimento da “revelação direta”.
Para completar seu importante discurso acerca do “Deus desconhecido”, diz Paulo que Deus, ao fazer o mundo, delimitou muito bem o lugar onde se o podia buscar, “para ver — diz — se tateando o buscavam e o achavam; por mais que não se encontra longe de cada um de nós, pois nele vivemos, nos movemos e somos”.
Este texto paulino, selecionado por Lucas, é a declaração mais concreta não só da presença interior de Cristo vivo, oculto, desconhecido, no homem, senão também da existência de uma via de busca para sua “revelação direta”.
Quando diz Paulo que Deus não “se encontra longe”, responde dentro da mais pura ortodoxia oculta aos termos do kerygma de Jesus, no qual afirma que o Reino de Deus “está próximo”. Paulo não o explica como proximidade temporal, tal como foi entendida por muitos, que ao seguir só a exegese manifesta esperavam, e ainda esperam alguns, a imediata presença do Reino. Paulo fala, sem dúvida, de proximidade “espacial”, ou melhor ainda, tal como o entendemos, de contiguidade cognoscitiva, segundo se deve entender a via oculta.
Também, quando Paulo diz que “nele vivemos, nos movemos e somos”, ficam implícitos dois níveis diferentes e superpostos do conhecimento do Ser: uma corrente de consciência superficial, manifesta, que “cremos ser”, e um ser verdadeiro, quieto, profundo, que é como o leito de um rio, oculto pelas águas quando esta correm turbulentas. Essa corrente é como a consciência que se desliza no tempo e que engendra a existência e movimento sobre o mistério de Deus, sobre o Cristo preexistente, o Filho do Homem, “em quem se acham ocultos todos os tesouros”.
No fundo essencial e ignorado da consciência é o Deus desconhecido que só pode ser revelado “diretamente”, isto é, por uma ação de autobusca interior na qual a totalidade do homem deve ficar implicada.
Essa é uma grande investigação que constitui a parte principal do Evangelho, ou melhor, “é” o Evangelho, Jesus descreve a disposição para esta investigação como uma “metanoia”, ou voltar-se da mente sobre si mesma.
Este “voltar-se” ou “reflexão luminosa” é necessário, e a partir dele uma longa purgação, um completo lavado interior, para que as águas (pensamento) sosseguem suas turbulências e deixem em pura transparência o fundo incomovível de Deus vivo.
Por último, para obter a manifestação íntegra do oculto, o qual será qualificado de ressurreição, o evangelho propõe com insistência uma paciente e ininterrupta vigilância, um estado de alerta incessante, pelo qual a “presença” que anteriormente foi descoberta se “estabiliza” na nova consciência, universal, “una”, nascida do espírito.
O primeiro passo, básico, fundamental, nesta busca interior, é a percepção da “presença” do Espírito de Deus, a Shekinah descrita pelos soferim judeus. Esta “presença”, cujo nascimento ou brotar na consciência, costuma aparecer como uma tênue intuição — “um vento que não se sabe donde vem nem aonde vai”, diz Jesus —, está chamada a florescer por si só se é contemplada com amor e devoção diligente.
Pouco a pouco, esta flor misteriosa, não nascida de ventre de mulher, senão do espírito, chega a mostrar-se por si mesma como a Glória da presença (a Iqar Shekinah) que muitos profetas antigos viram e até “foram” isto mesmo, e cujo testemunho na escritura reivindica com motivo Jesus para si como Filho do Homem.
Claro que a primeira condição para que tal revelação ocorra vem sob o signo da fé, uma fé que se fortalece pouco a pouco por si só uma vez nascida. A fé, esta fé, cresce e se consolida merce ao olhar do conhecimento vigilante, atenta, muito mais sólida e efetiva que o olhar dos olhos.
Dessa fé, que é “firme convicção do Ser”, falava Jesus quando dizia:
“Se não credes que Eu Sou,
morrereis em vossos pecados” (Jo 8,24).