José A. de Aldama — Maria na Patrística dos séculos I e II
Contribuição e tradução de Antonio Carneiro
3.4. A ascendência davídica de Maria
Este parece ser o momento oportuno para recolher o que se pensava no século II sobre a origem davídica de Maria. Como vimos, tanto São Irineu quanto Justino afirmam sem discussão que Maria procedia da casa de David. Ambos vem precisamente nesse fato o cumprimento das profecias e das promessas que foram feitas aos patriarcas, e em especial ao próprio rei-profeta.
Santo Inácio parece supor obviamente essa mesma ascendência davídica, ainda que expressamente não o diga1. Mais explícito parece ter sido o “Diatessaron” de Taciano2. Igualmente a carta apócrifa aos Coríntios que copiam as “Acta Pauli” :
O Senhor nosso Jesus Cristo nasceu de Maria, da semente de David…3
“A Natividade de Maria” o dá também certamente4. Certo que neste último caso pretendeu Zahn ver uma interpolação posterior. Mas, como o demonstrou Bauer, não se trata de uma frase isolada, mas sim de uma ideia subjacente ao longo de toda a narração, o que faz impossível a interpolação suposta5.
Entretanto encontramos antes a mesma ascendência davídica em Maria na “Ascensão de Isaías”6 :
Vi uma mulher da família do profeta David, cujo nome era Maria (…); e estava casada com um varão com nome de José (…), também da linhagem de David
Os “Testamentos dos XII Patriarcas” enunciam idêntica persuasão7:
E vi que de Judá nasceu uma Virgem, que levava um vestido de linho fino; dela nasceu um cordeiro sem mancha
Neste tempo conhecemos a opinião contrária unicamente a da “Carta de Barnabé” , que, em sua paixão anti-judaica, parece negar, não já de Maria, mas sim do próprio Jesus, a descendência davídica:
Como queira, pois, que haveriam de dizer que Cristo é filho de David, o próprio david, temendo e compreendendo o extravio dos pecadores, profetiza e diz: Disse o senhor a mim Senhor… Olha como david o chama de Senhor e não o chama filho8.
Mas, ainda neste caso, o autor só tem à vista uma filiação davídica que negue a filiação divina9. É o caso da pergunta feita aos judeus pelo próprio Jesus (Mt 22,42s)10.
Contrária era também, ao que parece, segundo dissemos, a opinião dos ebionitas. À ela deve referir-se Orígenes11 quando escreve:
“Verum occurrunt nobis quidam quaestiones acerbissimas commoventes, quomodo videatur Christus descendere ex semine David, quem constat non esse ex Ioseph natum; in quem Ioseph series ex David descendentis generationis adducitur ”12.
Orígenes, que prefere dar uma solução a base de interpretação alegórica do texto de São Paulo, que está comentando, nos conserva, no entanto, a solução que se costumava dar então à dificuldade: a descendência de david vem a Jesus por Maria, que tinha que ser da casa de David ao estar em matrimônio com José, quem certamente o era, como o provam as genealogias. Nem se acreditava então que fora uma dificuldade insuperável o parentesco de Maria com Isabel (Lc 1,36), que era da tribo de Levi; pois não todo parentesco arguía necessariamente comunidade de tribo13.
Se realmente os ebionitas arguiam assim contra a concepção virginal, explica-se bem a insistência de São Irineu em afirmar que Maria era da casa de David.
O problema e a solução voltarão a repetir-se não poucas vezes depois. Mas, entretanto, resulta claro que nos dois primeiros séculos se afirmava correntemente a ascendência davídica de Maria.
Notas:
Cf. Ephes. 18,2; Trall. 9,1; Smirn. 1,1. Segundo uns fragmentos de Hegesipo, conservados por Eusébio, os parentes de Jesus passavam correntemente por pertencer à casa de David. Cf. Eusébio, História eclesiástica 3,20,1-2; 3,32,3-5; 2,23,14: “Die Griechischen Christlichen Schriftsteller (GCS)” EUS 2,1 (9,1) 2328, 268,170; PG 20,252s, 281s, 196s. Mas Hegesipo não explica por onde vem a Jesus a descendência davídica. ↩
Em Lc 2,4 pode-se ler: “Os dois eram da casa de David” (“Diatessaron Tatiani” , ed. Ortiz de Urbina (Biblia Polyglota Matritensis, ser.VI, Matriti 1967) 210). Vide Santo Efrém, “Commentarium in Diatessaron” 1,25 (edic. Leloir): SC 121, 57-58. Cf. Zahn, “Forschungen” 1, 118 e 88. ↩
“Epist. Pauli ad Corinthios” 5-6: “Papyrus Bodmer” X-XII,35. Nas “Acta Theclae” volta a aparecer a mesma idéia (L.Vouaux, “Les Actes de Paul” (Paris 1913) p.148). ↩
“Natividade de Maria” 10,1 (De Strycker, p.110; BAC 148 p.153). O livro, fonte única para os nomes dos pais de Maria (Joaquim e Ana), ao falar destes, não diz expressamente que foram da família de David. essa posterior precisão a fez explícita no “Pseudo Mateus” 1,1 (BAC 148 p.184): “Iochin ex tribu Iuda” , e os escritos que dependem dele. ↩
Zahn, “Forschungen” 6, 330 nota; W.Bauer, “Das Leben Jesu im Zeitalter der neutestamentlichen Apokryphen” p.13 nota 2. Nota-se aliás que a existência da frase no texto do papiro Bodmer faz a interpolação mais ainda inverossímel. ↩
“Ascencio Isaiae” 11,2: ed. Tisserant, p.203. ↩
“Test. Ioseph” 19,8 (“Testamenta XII Patriarcharum” ed. M. de Jonge (Leiden 1964) p.78). sobre o velho problema da dupla procedênciado Messias (Levi-Judá) segundo os Testamentos, vide recentemente F.B.Braun, “Les Testaments des XII Patriarches et le problème de leur origène” : RevBibl 67 (1960) 523-543; no sentido diferente W. Bauer, o.c., p.12-13. ↩
“Epistula Barnabae” 12, 10-11: FlPatr 1,56; BAC 65 p. 797s. ↩
P.Prigent (“L’Epître de Bernabé I-XVI et ses sources” (Paris 1961) p.123-126) acaba de dar outro sentido à passagem. ↩
Citou-se também como contrária, mas sem razão convincente 1 Clementis 32. ↩
Cf. “In Mt Commentarium” 16,12: GCS Or 10 (40) 513; PG 13, 1413 A. ↩
“Commentarium in epist. ad Romanos” 1,5:PG 14,850. ↩
Ib., 851 ↩