Páscoa Tradição do Símbolo

Agostinho de Hipona — Sermões para a Páscoa
Excertos da tradução portuguesa da introdução de Suzanne Poque

A entrega (tradição) do Símbolo
Na sucessão dos Sacramenta da iniciação cristã, o «sacramento do Símbolo» tinha, como vimos, lugar de importância e abrangia vários tempos: entrega (tradição) do Símbolo quinze dias antes da Páscoa, primeira restituição (recitação, redditio) durante a cerimônia do escrutínio, restituição (recitação) solene durante a vigília pascal. No dia da entrega, o texto da profissão de fé, depois de pronunciado diante dos competentes, era costume ser comentado. Conservam-se quatro destas pregações: os sermões 212, 213 (mais completo no texto editado por Dom Morin: Guelf. 1), 214, de symbolo1. Além destes, o 215, de parecida estrutura e que desenvolve os mesmos temas, foi proferido depois da primeira redditio (restituição, recitação).

O orador explica o sentido da palavra symbolum. É palavra do vocabulário comercial. Os mercadores têm um sinal, marca, selo que obriga a sua sociedade por um contrato de boa fé (cf. S 212, 1). O que os cristãos chamam symbolum2 contém a fé comum (fides placita) da sua sociedade e o cristão fiel é reconhecido pela sua confissão, como por um sinal dado (signo dato). Cf. S 214, 12, e S Guelf. 1, 2. É também sinal de um contrato feito com Deus: «… Com a venda e o mercado da fé o reino dos céus está proposto à vossa compra (cum auctione et mercatu fidei; S 216, 3). O salário da fé (merces fidei) será a visão de Deus; então já não haverá necessidade de documento justificativo, de symbolum (S 58, 13). O symbolum é, portanto, o sinal, o penhor do tesoiro da fé: «Seja ele a vossa riqueza» (ibid.); por isso é ele do uso exclusivo dos cristãos fiéis; os competentes estão a começar a usá-lo: «Quando fordes batizados, tereis o Símbolo perfeitamente em vós» (De symbolo 15).

A seguir, com fundamento na Epístola aos Romanos 10, 9-14, justifica-se o momento da traditio symboli, o seu lugar na sucessão dos ritos da iniciação: «Porque se confessares de boca que Jesus é o Senhor e se creres em teu coração que Deus o ressuscitou dos mortos, serás salvo … Mas como é que haveriam eles de invocar aquele em quem não creram? E como é que poderiam crer naquele de quem não tinham ouvido falar?» Tanto gosta ele desta referência que lha encontramos em todos os sermões de symbolo, sem excepção de nenhum. Em S Guelf. 1, o 214 e o de fide et symbolo, o processo audire, credere, invocare, salvari explica a sucessão dos sacramenta da iniciação3.

Contudo o Símbolo não transmite verdades esotéricas: o seu conteúdo está todo esparso pelas Sagradas Escrituras ou põe-se ao alcance de todos na pregação. Isto é o que repetem o De fide et symbolo, o S 212, o De symbolo, o S 214. Mas a utilidade dele reside na brevidade. Graças a ele, o fiel pode abranger o objeto da sua fé como num simples olhar.

Entram aqui discretamente duas lindas imagens. O Símbolo é o espelho da fé (speculum fidei): «Seja para ti o teu símbolo como um espelho. Olha-te nele: para ver se crês tudo o que declaras crer. E alegra-te cada dia na tua fé» (S 58, 13). É também túnica e coiraça {túnica e loriga; ibid.). A origem desta imagem é a Epístola aos Efésios VI, 14. Ainda que S.to Agostinho expressamente o não diga, isto está em relação com a ideia de contrato: é necessário dar na cara do espoliador de ontem com a fórmula que liga ao justo possuidor. Neste sentido é que ele é lorica contra adversitatem (loriga contra o adversário; ibid.) e neste sentido é que se pode aconselhar: «Antes de saíres cobre-te com a proteção do teu símbolo» (De symbolo).

De modo que o cristão fiel há-de rezá-lo constantemente, na cama (S 215, 1), ao deitar e ao levantar (S 58, 13), e meditá-lo ao andar pela cidade (S 215, 1). Esta reza frequente tem também uma utilidade mais prosaica, a de evitar o esquecimento. A razão é que o Símbolo se aprende por tradição oral, não se pode escrever4 e, ao contrário do que sucede com o Pater, não se ouve à mesa do Senhor (S 59, 13).

Uma das vantagens do Symbolum é apresentar as verdades da fé numa ordem fixa (in ordi nem certum; S 214, 1). É, pois, de admirar que este ordo certus tenha mudado em Hipona durante o episcopado de S.to Agostinho: realmente os sermões in traditione symboli trazem dois textos diferentes. Os S 215 e 212 referem-se ao símbolo africano que se usava também em Cartago e se conservará muito tempo em Ruspe5. As outras pregações comentam o texto romano-milanês6.

A questão conservou-se muito obscura enquanto se julgou que o S 214 (Símbolo de tipo romano-milanês) se devia datar do primeiro ano de ministério de Agostinho. Era difícil de compreender que depois de ter adotado um texto romano, o bispo tivesse tornado a um texto africano, e depois outra vez ao tipo romano. Dom P. Verbraken dilucidou este ponto, provando que o S 214 foi composto ao fim da carreira de Agostinho para servir de modelo ou de texto aos sacerdotes da sua igreja que se estreavam na pregação.

Assim compreende-se melhor a sucessão dos fatos. Presbítero, depois bispo, Agostinho seguiu a tradição litúrgica da sua igreja, depois julgou preferível adotar (ou isoladamente ou de acordo com os seus colegas da Numídia) um Símbolo mais próximo da Ordem de Niceia e que estreitava os laços com a Igreja Católica. Embora Agostinho tivesse cuidado de não ferir os hábitos dos seus fiéis, nem por isso tinha medo de inovar em matéria de liturgia7. Aqui vai o texto do Símbolo africano de Hipona, tal qual chegou até nós segundo o S 215.

Credo in deum patrem omnipotentem universorum creatorem, regem saeculorum, immortalem et invisibilem.

Credo in Filium ejus Jesum Christum dominum nostrum, natum de spiritu sancto et virgine Maria. Crucifixus est sub Pontio Pilato et sepultus est. Tertia die resurrexit a mortuis, ascendit ad caelos. Sedet ad dexteram dei patris inde venturus est judicare vivos et mortuos.

Credo in spiritum sanctum, in remissionem peccatorum, resurrectionem carnis et vitam aeternam, per sanctam ecclesiam.

Creio em Deus Pai todo-poderoso, criador de todas as coisas, rei dos séculos, imortal e invisível.

Creio no seu Filho Jesus Cristo Nosso Senhor, nascido do Espírito Santo e da Virgem Maria. Foi crucificado sob Pôncio Pilatos e foi sepultado. Ao terceiro dia ressurgiu dos mortos, subiu aos céus. Está sentado à direita de Deus Pai e de lá há-de vir julgar os vivos e os mortos.

Creio no Espírito Santo, na remissão dos pecados, na ressurreição da carne e na vida eterna, pela santa Igreja.

NOTAS


  1. Estas pregações são de extensão muito desigual. Na nossa edição o S 212 merece bem o qualificativo de brevis sermo que Sto Agostinho lhe dá. Tem menos de metade da roupa do S. Guelf. 1, três vezes menos que a do S 214, quatro vezes menos que a do De Symbolo. Para o S 215, ver a edição dele feita por Dom P. Verbraken, «Os sermões CCXV e LVI de S.to Agostinho», RB t. LXVIII (1958), pp. 5-40, que restituiu a lição boa: Sacrosancti mysterii symbolum (em vez de Sacrosancti martyrii Symbolum). É curioso comparar as catequeses sobre o símbolo com o De fide et Symbolo, que é o discurso feito por Agostinho, ainda sacerdote, diante dos bispos reunidos no Sínodo de Hipona em 393. A ordem cronológica das nossas catequeses seria aproximadamente: Sermões 215, 212, Guelf. 1, De Symbolo, 214. Três delas guardavam-se na Biblioteca de Hipona: Possídio nota no seu Indiculus: De Symb + olo tractatus três. 

  2. A palavra Symbolo foi estudada por J. N. D. Kelly, em Early Christian Creeds, Londres 1960, pp. 52-61. 

  3. Tradição (entrega) do Símbolo = audire (ouvir); redditio (restituição, recitação) = credere (crer), entrega-recitação do Pai-Nosso = invocare (evocar); banho batismal = salvari (ser salvo). 

  4. Agostinho dá uma explicação mística da Disciplina do Arcano (S 212, 2). 

  5. Cf. em J. N. Kelly (ob. cit.) os textos dos «credos» africanos de Cartago, Hipona, Ruspas, pp. 176 s. 

  6. A. Hahn, Bibliothek der Symbole und Glaubens-regeln der Autenkirche, Breslau, 1897, indica (p. 138) que o texto comentado nos sermões 212, 213 e 214 é o símbolo usado em Milão e que o texto comentado no S 215 seria o texto usado em Hipona. Para H. Denziger e J. Umberg, Enchiridion Symbolorum, Friburgo, 1960, excetuando o S 215, todas as outras pregações se referem a um texto de tipo milanês. Isto fez duvidar, cremos que sem razão, da autenticidade do S 215. Havemos de ver que o S 212, tão evidentemente agostiniano de uma ponta a outra, apresenta também o texto africano. O caso do De fide et Symbolo é diferente: proferido no Sínodo de Hipona em 393, é um comentário se não da letra, ao menos da disposição geral e do teor do Símbolo de Niceia. Tinha sido submetida à aprovação dos Padres uma versão latina do Símbolo de Niceia. (Mansi t. 3, col. 894; Turner, Ecclesiae Occidentalis Monumenta Juris Antiqua, t. 1, fase. 2, pars I, pp. 302 e 304; Héfélé-Leclerq, t. 2, pars I, pp. 82 ss.). Agostinho bem declara nas Retractationes, 1, 17, que não se deve lá buscar o texto da liturgia batismal: verborum illa contextio, quae tenenda memoriter competentibus traditur (aquele contextura ou conexão de palavras que se entrega aos «competentes» para a fixarem na memória). 

  7. D. De Bruyne não receia atribuir a inovação do nosso autor a fórmula do pai-nosso: «Ne nos inferas» (não nos leves, metas) em vez da fórmula africana «ne patiaris vos induci»; não sofrais que sejamos levados) e fala a este propósito de duas gerações de fiéis de Hipona: os fiéis que tinham sido batizados por ele e os «velhos, a geração formada antes (do seu) episcopado» («S.to Agostinho revisor da Bíblia», MA II, p. 599). Veremos adiante que não duvidou também modificar, ao menos por três vezes, a ordem das perícopes da semana de Páscoa