Pascoa – Sacramento da Passagem

PÁSCOA — SACRAMENTO DA PASSAGEM

O sacramento da passagem
Securi agamus Pascha (S 216, 6). Celebremos a Páscoa seguros. Celebrar a Páscoa é primeiro comemorar a morte e a ressurreição de Cristo. Nisto consiste a sollemnitas. O seu objeto é renovar em nós com mais alegria a lembrança do acontecimento histórico: «Edifiquemo-nos acreditando que Cristo Senhor ressuscitou. Já sem dúvida o acreditávamos quando ouvimos ler o Evangelho, já sem dúvida o acreditávamos quando hoje entramos nesta reunião; e não obstante, não sei como é, ouvimo-lo com alegria porque assim o sentimos mais vivo na memória.» (S 234, 2). Memória nostra laetius innovetur (renove-se mais alegre a nossa memória); mais ainda fides nostra clarius illustretur (ilumine-se de mais claridade a nossa ; (S 218, 1). Porque o essencial da é precisamente acreditar em Cristo ressuscitado.

Como a sollemnitas lhe dá ensejo e a celebratio possibilidade, o pastor tem que velar pela autenticidade desta : «Ninguém creia de Cristo senão o que Cristo quis se creia d’Ele» (S 237, 4).

As diferentes narrações da ressurreição servem-lhe de fundamento para lutar contra as várias heresias trinitárias e cristológicas: «Que é que nisto me quis Cristo mostrar senão que sabia o que para mim era bom eu cresse e o que era nocivo que eu não cresse?» (S 238, 2). Contra os maniqueus e os priscilianistas prega, pois, a em Cristo verbum et caro (verbo e carne); contra os sabelianos, os arianos, os discípulos de Fotino, a em Cristo aequalis Patri (igual ao Pai); contra os apolinaristas, a em Cristo deus et homo (deus e homem); contra os donatistas, a em Cristo corpus et caput (corpo e cabeça); contra os pelagianos, enfim, a em Cristo médico. De modo que a festa da Páscoa reaviva a alegria do cristão e ao mesmo tempo ilumina a sua .

«Celebrar a Páscoa» é ainda mais. Efetivamente a Páscoa não é só, como o Natal, como a Epifania, como tantas outras festas cristãs, uma sollemnitas, é também um sacramentum. A sollemnitas aponta para os fatos e para os ensinamentos objetivos contidos neles, o sacramentum introduz os fiéis numa realidade invisível que diretamente lhes toca. Que Cristo ressuscitado já não morre e a morte já não tem domínio sobre Ele, eis aí o objeto da sollemnitas; que Cristo tenha sido entregue pelos nossos pecados e tenha ressuscitado para nossa justificação, aí está o sacramentum. É esta ao menos a explicação que se dá na carta a Januária (Epist. 55, 1-2).

A este propósito o sermão 272 dá uma definição: «Isto chama-se sacramentum, porque nele uma coisa é o que se vê e outra o que se entende. O que se vê tem aparência material o que se entende tem fruto espiritual.» Segundo a carta a Januário, uma celebração litúrgica é sacramentum quando a comemoração dos fatos históricos é tal que se entende que ela significa um dom sagrado feito por meio dela ao povo fiel…»

«Celebrar a Páscoa» é receber este dom invisível, este fructus spiritalis (fruto espiritual), este aliquid quod saneie accipiendum est (algo que se deve receber com santidade). Mais ainda, o «sacramento da sua Paixão e da sua Ressurreição» (S 231, 7) é o sacramentum por excelência, porque o fato visível, significativo, é a morte e a ressurreição históricas; o fato invisível mas real, significado, é a passagem da morte à vida.

A Páscoa é o sacramento da passagem. A própria palavra o indica: pascha em hebreu significa transitus. Depois de nos ter acautelado contra a etimologia fantasiosa que faz derivar pascha do verbo grego paschein (sofrer), Agostinho cita habitualmente três textos: Jo 13, 1 ut transirei de mundo ad Pairem (para passar deste mundo ao Pai); Jo 5, 24 Qui credit in me transit de morte ad vitam (quem crê em mim passa da morte à vida); finalmente, Rm 4, 25 traditus est propter delicia nostra, resurrexit proter justificationem nostram (foi entregue por causa dos nossos delitos, ressuscitou por causa da nossa justificação), que sublinha menos o acontecimento da passagem que o seu valor sacramentai. «Através da paixão, o Senhor passou da morte à vida e abriu-nos caminho para nós, para nós que cremos na sua ressurreição, para que também nós passemos da morte à vida … Crer que Ele morreu, não vale nada; também o creem os pagãos, judeus e ímpios. A dos cristãos é na ressurreição. Isto é o que monta. Quis que conhecêssemos a sua ressurreição, isto é, a sua passagem. Quis que crêssemos n’Ele no momento da sua passagem» (En. in Ps. 120, 6).