Pascoa Penitentes

PÁSCOA — SACRAMENTO DA PÁSCOA
A volta dos penitentes
«Porque é que vós, que nascestes de novo, haveis de morrer?» (S 392, 3). «Choras um morto, chora mais um pecador» (S 65, 7). Se o batismo é nascimento para a vida, o pecador recai na morte, donde a penitência o livra. Durante o período quaresmal, os paenitentes, como os competentes, estão em marcha para a fonte da vida. Três são os textos da pregação pascal que dão testemunho da presença deles na reunião dos cristãos, pois também eles participam no sacramento da Páscoa.

«Os que vedes fazer penitência, explica Sto. Agostinho aos competentes, cometeram crimes, ou adultérios ou outras ações horríveis. Por isso é que fazem penitência» (S de Symbolo, 15).

Numa terça-feira de Páscoa o bispo observa: «Os penitentes estão aqui em grande número; quando chega o momento se lhes impor as mãos, formam uma longa fila. Rezai, oh! penitentes! E os penitentes põem-se a rezar. Ponho os olhos nos penitentes e vejo gente que vive mal. Como é que uma pessoa se arrepende do mal que fez? Se se arrepende, não o torne a fazer. Se o torna a cometer, o nome de penitente engana, o crime fica. Alguns buscaram por si mesmos o lugar da penitência; outros foram compelidos a ele pela nossa excomunhão. Os que o buscaram voluntariamente continuam a fazer como faziam, e os que foram compelidos a ele pela nossa excomunhão não buscam sair dele, como se tivessem escolhido de vontade este lugar de penitência. O que devia de ser lugar de humilhação torna-se assim lugar de perdição. Falo-vos a vós … Que vos hei-de eu dizer? Hei-de louvar-vos? Não tenho motivo para vos louvar, gemo e choro. E que lucro eu com isto? Que me tenham na conta de velha rabugenta. Rogo: Mudai de vida, mudai de vida … Sonho que estou falando como costumo falar e alguns de vós continuam fazendo o que costumam fazer … Sacudo os vestidos na presença de Deus. Receio muito que me censurem de ter medo. Procuro o vosso bem» (S 232, 8).

Enfim, num sábado de Páscoa, a propósito do ofício de Pedro, fala do poder das chaves: «Se isto foi dito só a Pedro, só Pedro pôde ligar e desligar, morreu e acabou. Quem é que pode agora ligar e desligar? Não tenho dúvida de afirmar que também nós temos as chaves. Vou, pois, dizer que nós é que ligamos e desligamos? Também vós ligais e também vós desligais. Na verdade, quem está ligado está separado da vossa comunidade (vestra consortio), e pois está separado da vossa comunidade, está ligado por vós. Quando é reconciliado, é desligado por vós, porque vós também rogais a Deus por ele. (S Guelf. 16, 2).

É fácil de alcançar a importância destes textos. O último põe em realce um aspecto essencial da penitência, sublinhando-lhe o caráter social, que é o de toda a liturgia sacramentai na Igreja cristã. Mostram que a Igreja, ao contrário do maniqueísmo e do donatismo, conserva a consciência de ser um agregado de pecadores.

Por isso a penitência está de fato presente em toda a vida do cristão: penitência pré-batismal para os pecados do homem velho que, por grandes e numerosos que sejam, o batismo perdoa; penitência quotidiana dos fiéis e do próprio bispo, pelos pecados quotidianos, estes minuta em que o homem novo incorre pela sua fragilidade mortal e pelos quais bate cada dia no peito dizendo: Perdoai-nos as nossas dívidas; terceira espécie de penitência enfim (humillima paenitentia. Epist. 53, 7), para os pecados mais graves que dão a morte ao pecador (mortiferum, lethale vulnus. S 352, 8). Estes pecados são teoricamente os pecados contra o Decálogo e a Lei (cf. S 351, 7), especialmente o adultério, o homicídio, a idolatria (cf. De fide et operibus 34; S 352, 8). Por grave que seja o pecado, pode ser perdoado pela misericórdia de Deus (Enchiridion, 17-LXV)1.

Qual é então o pecado contra o Espírito que não pode ser perdoado? (cf. II TM 2, 19). É precisamente a recusa da penitência. Perdoar os pecados é obra do Espírito na Igreja (cf. Jo 20, 22-23). O Espírito é espírito de união: o Pai não é Pai senão do Filho e o Filho não é Filho senão do Pai, mas o Espírito é espírito do Pai e do Filho (S 71, 33). É, portanto, Ele que suscita a nossa comunhão (societas), «pela qual nós nos tornamos o corpo único do único Filho de Deus» (S 71, 28). Por conseguinte recusar o dom de Deus, o dom do perdão que nos integra ou nos reintegra no corpo do Filho, pela regeneração do batismo ou pela reconciliação da penitência, isto é pecar contra o Espírito (S 71, passim). Que Judas tenha atraiçoado o Senhor, até isto lhe teria sido perdoado. Morreu porque desesperou da misericórdia. Enforcando-se, negou-se de corpo ao sopro da vida — de coração ao sopro do Espírito (cf. S 352, 8).

O De fide et operibus enumera os diferentes tratamentos que livram de suas culpas o fiel. Em primeiro lugar a reza do Pai-Nosso, remédio (medela) dos pecados miúdos (peccata minuta) de cada dia (cf. S 56, 17, 5, etc). Em seguida, a medicação das reprimendas, correptiones, entre dois somente, referência a S. Mateus 18, 15 (cf. S 17 e 82). Por fim a cura dos casos mais graves pode conseguir-se (sananda esse) pela humildade da penitência «tal qual é dada na Igreja aos que se chamam propriamente penitentes».

Não se sabe muito bem que nome dar aos fiéis submetidos em particular à correptio do bispo nem também em que é que consiste exatamente esta correptio. Segundo o S 17, 6 deveria haver uma confissão ao bispo: «Diz: Fiz mal, pequei. Pois não morrerás se o declarares, não já a mim, acredita, mas a Deus. Quem sou eu? Um homem como tu.» Depois disto o bispo podia convencer o fiel a fazer penitência (persuadeo paenitentiam) sem ter havido sentença pública de excomunhão. Esta cura secreta continua muito obscura para nós2.

Quando o pecador torna à vida, o momento da confissão dos pecados assinala o momento da ressurreição dele: «Pois não morrerás se declarares: Pequei.» Cada vez que Agostinho comenta uma das três ressurreições do Evangelho (filha de Jairo, filho da viúva de Naim, Lázaro), explica a ressurreição do pecador na penitência, porque os feitos miraculosos do Senhor são palavras que esclarecem os sacramentos» (domini jacta miracolorum verba sunt mysteriorum. S Mai, 125, 2).

O cadáver em casa (domi), é o pecado interior, e o arrependimento do coração ressuscita a quem pecou em seu coração; o cadáver que ainda não foi enterrado, como em Naim, é o pecado isolado; mas o pecado habitual, reiterado, mete o pecador na sepultura, jam foetet.

«Sofram, pois, violência os que andam oprimidos com o hábito do pecado.» Cristo anela ressuscitá-los. Interpela-os vigorosamente a palavra de Deus, grita para eles a Escritura, gritamos para eles também nós para ser ouvidos e nos regozijarmos como de Lázaro redivivo. Tirai a pedra. Sem descarregar o peso do hábito pecaminoso, quem poderá ressuscitar? Gritai, pois, cercai-o (ligate), rogai-lhe, acusai-o, sacudi a pedra. Não poupeis nada quando encontrardes destes tais. Tereis de ter um pouco de trabalho, mas abalareis a pedra. Clame então ele, ele, isto é, aquele cuja voz vai até ao coração: «Lázaro, cá fora! Sai!» Sai, isto é, vive. Sai do sepulcro, muda de vida, deixa a morte. E o morto avançou, ligado nas faixas. Porque embora tenha deixado de pecar, ainda é culpado do que cometeu. Tem que orar, tem que fazer penitência do mal que f ez… está ainda atado. Por isso disse Cristo aos servidores da sua Igreja que impõem as mãos aos penitentes: «Desatai-o e deixai-o ir.» Desligai, desligai. «Tudo o que desligardes na terra será desligado no céu» (S Mai, 125, 2).

Assim, pois, confessar o pecado, com vontade de não mais o cometer, é sair do sepulcro à voz de Cristo. Mas o pecador tornado à vida, continua atado enquanto os discípulos não desatarem as faixas do ressuscitado, enquanto o bispo não reintegrar o pecador na sociedade dos fiéis. Está «separado do altar», separado do corpo do Senhor, sacramento de unidade, separado de Cristo, cabeça e membros, até ao dia da reconciliação. Tal a doutrina da penitência exposta por S.to Agostinho.

A prática não é tão simples. Os cristãos de Hipona não tinham todos consciência muito delicada nem muito assisada. Havia quem costumasse dizer: «Deus não faz caso dos pecados da carne!» (S 82, 11). Alguns recém-batizados tinham não pouca dificuldade em compreender que tanto eram proibidos os amores ancilares como o adultério e a frequentação das meretrizes (S 224, 3). Recorrer aos astrólogos (mathematici) ou aos feiticeiros (incantatores) era tentação quotidiana que os verdadeiros fiéis repeliam como pecado de idolatria (S 56, 12). Mas a gula, a embriaguez são também pecados graves (S 278, 8)20.

O bispo convidava muitas vezes os seus ouvintes a uma séria e exigente revisão de vida. Lembrava-lhes que não se pode, ao mesmo tempo, cometer o pecado e participar do corpo e sangue do Senhor: «Ficais tristes quando me ouvis dizer: Se não guardais a castidade, não vos chegueis a este pão. Quem me dera não ter que dizê-lo. Mas … para não penalizar os homens, hei-de calar a verdade?» (S 132, 4).

Além destas advertências gerais, dá muitas vezes em público, mas com forma anônima, repreensões certeiras (correptiones), tantas vezes sem fruto: «Repreendo publicamente a muitos de vós, todos me louvam; oxalá um ou outro me ouvisse!» (S 82, 15). A responsabilidade de tantas consciências desencaminhadas parece ao bispo esmagadora: «Gememos pelos pecados dos nossos irmãos e sofremos violência e passamos tormentos em nosso coração. Às vezes repreendemo-los ou, antes, não cessamos de repreendê-los. Podem-me dar o seu testemunho todos aqueles que se lembram das minhas palavras. Os irmãos que pecam, repreendemo-los constantemente e repreendemo-los com severidade … Tu sabes, Senhor, o que eu disse, tu sabes o que eu não disse, tu sabes o que eu disse de todo o meu coração, tu sabes que chorei diante de ti quando falava e não era ouvido» (S 137, 14, 15).

Quando lhe sucedia ser ouvido, isto é, quando o pecador entrava no número dos penitentes (locus paenitentiae), isto era apenas um princípio de vitória. Pois, não parece, na prática ao menos, que os penitentes de Hipona levassem a vida ascética (jejum, continência, cilício) que habitualmente se descreve como própria dos penitentes. Parece até que muitos deles continuavam alegremente na vida de pecado (cf. S 232, citado atrás). Não há dúvida de que, pelo próprio lugar que ocupavam, se confessavam excluídos da comunhão dos fiéis. Isto requeria certa coragem, pois perder a estima dos homens sempre causa vergonha; mas alguns pecadores continuavam a juntar-se à reunião dos fiéis enquanto o escândalo não provocava a excomunhão.

Agostinho parece que não era pronto em usar dela: «Somos tardos em excomungar, em expulsar da Igreja» (S 17, 3). Censuravam-no disso e ele explicava-se: as informações que tinha não eram tão boas como se cuidava; mesmo bem informado, preferia ter paciência para que o remédio não fosse pior que o mal; se só ele estava informado, pensava que não devia indicar à justiça civil o criminoso; finalmente, a pecado oculto, repreensão secreta (por exemplo, os adultérios que as esposas lhe vinham denunciar) (S 17, 3 e 82, 11)3.

Depois de ouvir o Eu. X, 5) ou de confessar espontaneamente o pecado, o pecador pede a penitência. E agora na lenta subida do abismo da morte, a marcha dos penitentes é paralela à dos catecúmenos4. Como eles, ocupam na igreja um lugar fora da comunidade; como eles, não participam na eucaristia (talvez nem mesmo assistam a ela, pois estão «separados do altar»)5; como eles, vão em procissão receber a imposição das mãos (S 232, 8). Mas, também como eles, têm pouca pressa de romper com os hábitos em que vivem; como eles, fazem a má conta de retardar a reconciliação, como se dilata o batismo, pois como o batismo só se recebe uma vez, a reconciliação também se dá uma vez só. (Epist. 53, 3).

Tudo isto explica a admoestação de terça-feira de Páscoa aos penitentes no texto que atrás citamos. Depois das festas pascais, só ficavam na classe dos penitentes aqueles que não tinham concluído o seu período penitencial6 e principalmente aqueles que se ajeitavam a uma situação que reputavam menos exigente, penitentes afinal que de penitentes só tinham o nome, nome que era um véu de hipocrisia. Nomen errat, crimen manei. O nome engana, o crime fica7.

É provável que na entrada da Quaresma, Agostinho, ao mesmo tempo que fazia o convite para o batismo, fizesse também um à penitência. Temos dois testemunhos: as alusões do S 132 e o sermão já citado, publicado por Dom Lambot. «Exortamos ontem a Vossa Caridade, a todos vós que sois catecúmenos, a que viésseis depressa, sem demoras, à fonte da vida; e a vós todos que, para vossa perdição viveis em pecados, em torpezas e na devassidão, a mudar de vida, a fazer penitência (pois o que amais não é a penitência, mas a licença), a mudar de vida e a preparar-vos todos para a reconciliação, segundo a vontade de Deus

Quer dizer que havia entre os pecadores quem pedisse a penitência, entre os penitentes quem pedisse a reconciliação8, e estes tinham que preparar-se para a reconciliação, ut parati sitis (para estardes preparados), como os competentes se preparavam para o batismo. Aqueles entravam com seriedade9, ao lado da Comunidade inteira dos fiéis, na penitência dos Quarenta Dias e davam-se ao exercício da oração, das vigílias, do jejum, da continência, da esmola, para alcançar de Deus a remissão dos seus pecados10.

NOTAS


  1. Estamos, pois, longe das correntes rigoristas dos séculos precedentes e especialmente, quanto à África, do montanismo e do cisma de Novaciano. Contudo persiste-se em não conceder a reconciliação senão uma vez (Episí. 153, 3). 

  2. Conhecem-se as opiniões divergentes emitidas neste assunto por Karl Adam e B. Poschmann. E. Amann, no artigo Penitência, DTC, t. 12, c. 722-845, tentou apresentar as conclusões de trinta anos de discussão (1933).
    Para vulgarização foi bem exposta por J. A. Jungmann, em La liturgie des premiers siècles, Paris, 1962, a prática da penitência na época patrística. O capítulo «La deuxième rémission des péchés» da obra do P. Van Der Meer, Saint Augustin, pasteur d’âmes, II, p. 161, traça um quadro rico, matizado, sugestivo. Para os ritos da penitência: W. Rötzer, Des Heüigen Augustinus Schriften ais liturgiegeschichtliche Quellen, Munique, 1930. 

  3. Alhures esta atitude de discrição é explicada com alguma diferença: no S 351, 10 (de autenticidade controversa) a excomunhão é apresentada como sentença de um tribunal eclesiástico; ora como nem sempre os fatos são suficientemente determinados e precisos, os bons cristãos, sem provas certas, não se atrevem a acusar, e os juizes eclesiásticos não se afoitam a crer nas acusações: «Quanto a nós, não podemos afastar ninguém da comunhão (ainda que tal afastamento não seja mortal, senão medicinal) se a pessoa não confessa espontaneamente o pecado ou se não foi condenada por um tribunal civil ou eclesiástico. Pois, quem se atreveria a ser ao mesmo tempo acusador e juiz? (S 351, 10). 

  4. Muitos textos de Sto Agostinho põem em paralelo batismo e reconciliação, catecúmenos e penitentes. «A graça da regeneração ou da reconciliação que existe na Igreja no Espírito Santo (S 71, 23). Cf. também Epist. 228, 8: alii batizantur … alii reconciliantur. Ao cristão em perigo de morte, dava-se sem dilação, se era catecúmeno, o batismo; se era penitente, a reconciliação. 

  5. A questão é controversa. Mas os textos de Agostinho aduzidos pelos defensores da tese da não exclusão, não parecem convincentes aos defensores da outra. 

  6. Cf. Enchiridion 17. Fixar o tempo da penitência pertence aos que presidem aos destinos da comunidade, a fim de que cada pecador cumpra uma penitência em proporção com o seu pecado (secundum modura sui cujusqne peccati). 

  7. O mau penitente tinha sobre o pecador não arrependido a vantagem de ficar à providência da Igreja. Do pecador podia-se dizer: «Se espera para o fim da vida, não sabe se poderá receber a penitência e confessar os pecados a Deus e ao sacerdote» (S 393, 1). Pelo contrário, reconciliavam-se à hora da morte os penitentes, embora fossem adúlteros notórios, mesmo que não pudessem dar o mínimo sinal de vida (De conjugiis adulterinis 1. 35). 

  8. O penitente fazia uma diligência pessoal quando queria ser admitido à reconciliação, cf. S 296, 12. 

  9. Entre tantas observações pessimistas sobre os penitentes, releva-se com prazer esta notação: «Às vezes a penitência dos pecados melhora os homens» (S 60, 12). 

  10. Agostinho nada de determinado nos diz sobre a data e os ritos da reconciliação. Diz, a propósito da reconciliação in extremis, que a Igreja lhes dá as «arras da sua paz» (De adult. conj. 1, 35).