Agostinho de Hipona — Sermões para a Páscoa
Excertos da tradução portuguesa da introdução de Suzanne Poque
A Oração do Senhor
Oito dias depois do Símbolo, depois de os competentes o terem rezado a primeira vez em público, fazia-se-lhes entrega, provavelmente durante uma cerimônia diferente, da Oração do Senhor, o Pater (Pai-Nosso), que haviam de aprender para o rezarem dali a oito dias, isto é, sábado, vigília de Páscoa, mas não durante a vigília. Quando a redditio (restituição, recitação) do Símbolo era em Sl mesma um passo importante da iniciação, a redditio do Pater parece uma simples repetição. Não se «recita» então o Pater, não se «ora» então, porque o Pater é a oração dos filhos: «em verdade como é que havia de dizer «pai-nosso» o que ainda está por nascer?» (S 59, 7).
Na biblioteca de Hipona guardava-se um destes sermões De oratione dotninica; quatro deles chegaram até nós: os sermões 56 a 59.
No dia da entrega, era costume comentar para os competentes as palavras da oração, ou antes o Evangelho de S. Mateus 6, 7 s., cuja leitura acabava de lhes ser feita. O ponto de arranque é sempre a citação, segundo S. Paulo, de Joel, 2, 32: «Quem quer que invocar o nome do Senhor será salvo», com o seu contexto da Epístola aos Romanos, 13-15.
A sucessão das entregas do Símbolo e do Pater recebe assim uma justificação lógica. «Tendes que aprender primeiro o que haveis de crer e depois o que haveis de orar» (S 58, 1). É a ordo aedificationis (ibid.). O Senhor ensinou pessoalmente os seus discípulos a orar; os conselhos que deu são de bom advogado e a nossa causa está em boas mãos, pois o nosso conselheiro jurídico (jurisperitus) é precisamente o juiz-assessor (Assessor Patris).
Único filho do Pai, o Senhor não quis ficar «filho único1, por isso o Único tem irmãos sem conta que dizem Pai nosso que estais nos céus» (S 57, 2). «Um general, um mendigo, um escravo e o seu dono, que dizem cada um: Pai nosso, compreendem que são irmãos» (cf. S 58, 2; 59, 1) .
«Santificado seja o vosso nome.» Este pedido é para nós. Rogando-lhe que nos torne santos «pedimos para nós e não para Deus» (S 57, 4).
«Venha a nós o vosso reino» é explicado em relação com S. Mateus 25, 34: «Vinde, benditos de meu Pai, recebei o reino», com o comentário: «Quer lho pecamos quer não, o seu reino há-de vir» (S 57, 5); «há-de, pois, vir; mas que é que isto te aproveita, se te encontrar à esquerda? Portanto, para ti é que o desejas e para ti é que o pedes» (S 56, 6).
Sicut in caelo et in terra (tanto no céu como na terra) pode entender-se de vários modos. A expressão pode significar: por nós como pelos anjos. Segunda explicação: o céu é a Igreja, a terra os inimigos dela. Terceira explicação: a nossa alma chama-se metaforicamente céu e o nosso corpo terra, pedimos a vitória sobre a carne revoltada contra o espírito. S.tp Agostinho aliás dá esta explicação como tradicional e afirma que se encontra em S. Cipriano2.
O nosso pão quotidiano é primeiramente tudo o que é necessário à nossa vida, depois o pão das almas: palavra de Deus e corpo de Cristo. Para o que é necessário à nossa peregrinação {necessária peregrinationis nostrae; S 57, 1), temos que nos declarar «mendigos de Deus» (S 56, 9). De Deus até os ricos são mendigos. «De que é que precisa o rico? Não hesito em o dizer: do seu pão de cada dia. Pois, se nada lhe falta, não é porque Deus lhe deu tudo? Que é que ele terá, se Deus lhe retirar a sua mão?» É, portanto, justo pedir o pão dos homens; mas é necessário pedir também o pão dos filhos (S 56, 10).
Esta comida espiritual, que os fiéis já conhecem e que os competentes tomarão brevemente no altar de Deus, é a eucaristia: «Será também um pão quotidiano necessário à vossa vida» (S 57, 7). E o sentido da súplica é então determinado: «Que quer dizer: Dai-nos o nosso pão de cada dia? Que vivamos de tal modo que nada nos aparte do vosso altar» (S 58, 5). O pão dos filhos é também a palavra de Deus: pregações, leituras litúrgicas da Escritura, hinos (S 57, 7): «E a palavra de Deus que cada dia se abre para vós e que, de algum modo, se reparte por vós, é um pão de cada dia» (S 58, 5).
«Perdoai-nos as nossas dívidas como perdoamos aos nossos devedores.» Poucos versículos do Evangelho foram mais pregados por S.to Agostinho do que este. Mesmo depois do batismo, o fiel não é isento de pecado: «Todos somos devedores, não de dinheiro, mas de pecados. Talvez me queirais dizer: Mesmo vós? Nós respondemos: Mesmo nós. — Mas então, santos bispos, até vós sois pecadores? — Mesmo nós somos pecadores. — Mesmo vós? Não, não é possível; Vossa Reverendíssima está-se prejudicando. — Não me estou danificando, digo a verdade: nós também somos pecadores.» (S 56, 12).
A Oração de Senhor é, com o batismo e a penitência, um dos três meios postos à nossa disposição para remissão dos nossos pecados: é a cottidiana mundatio (limpeza de cada dia; S 56, 12), a cottidiana medicina (remédio diário; S 17, 5), a cottidiana medela (cura quotidiana; De fide et operibus, 48), o cottidianus batismus (batismo quotidiano; S Guelf. 1, 9). OS 57, 12 desce a minúcias de verdadeiro exame de consciência.
Mas este perdão é condicionado. Foi objeto de um contrato: não seremos perdoados sem perdoarmos. A libido vindictae (paixão da vingança) é, portanto, a mais terrível das tentações, já que todos os outros pecados nos podem ser perdoados pela oração, e só a vingança pode impedir a cláusula do contrato de actuar a nosso favor (S 58, 11.) O exemplo de Jesus na cruz, ou, se arguindo da nossa fraqueza o rejeitamos, o de Estêvão, deve mover-nos a perdoar aos nossos inimigos: «Não julgueis isto impossível. Eu sei, eu encontrei, eu conheço cristãos que têm amor a seus inimigos» (S 56, 14).
Ne nos inferas in tentationem. Agostinho tem conhecimento de outras versões deste texto: «Algumas edições trazem inducas que, a meu ver, também é bom, uma e outra destas palavras traduzem a mesma palavra grega: eisenegkes. Mas alguns dizem: Ne nos patiaris induci in tentationem (Não sofrais que sejamos induzidos em tentação; De sermone domini in monte 2, 30). Põe de parte a terceira por lhe parecer uma paráfrase; servia-se da primeira (inferas) quando se tratava de uma citação literal da oração oficial da Igreja, da primeira ou da segunda quando citava mais livremente. Deus não nos tenta, permite que sejamos tentados. Realmente o que devemos pedir não é não ser tentados, é não cair na tentação. Com uma análise delicada de exemplos concretos aponta aos competentes (S 57, 11) os ardis da concupiscência no caminho sinuoso e delicioso que vai da tentação ao consentimento: Dulce est peccatum sed amara est tnors (O pecado é doce, a morte amarga; S 58, 9).
Ao fim de cada sermão, observa, numa recapitulação breve, que três dos pedidos se referem à vida eterna e por isso são de valor perdurável, ao passo que os últimos quatro só são de formular na vida terrestre. Agostinho tem sempre o pensamento na vida bem-aventurada e nela se coloca por antecipação.
NOTAS
Et cum sit ipse Filius Dei unicus tameu noluit esse unus (E sendo Filho Único de Deus, contudo não quis ser só; S 57, 2). ↩
Quod non absurde quidam intellexerunt (Como alguns não incongruentemente entenderam, Ench. 30). No Contra Jvlianum Pel. II, 6, cita o passo de Cipriano. Era esta também a interpretação de Tertuliano (De oratione 4). De notar que o comentário de Agostinho ao pai-nosso (Pater), no sentido, não se afasta do de Cipriano: abrevia-a, mas não inova. Omitiu três pontos curiosos: 1) a sobriedade da oração cristã (De oratione dominica 3); 2) a Oração do Senhor, oração da unidade (ibid. 8); 3) «o pão nosso de cada dia nos dai», oração da pobreza cristã (ibid. 19). ↩