Pascoa Escrutínio

Os ritos
O Escrutínio.
O primeiro ato verdadeiramente decisivo era a entrega do Símbolo. Segundo S Guelf. 1, 1 e 2, S 58, 1 e 13, S 59, 7, S 213, 8, fazia-se em Hipona, quinze dias antes da Páscoa. Contudo, isto não era ainda senão um ensino. Durante uma semana, os competentes, auxiliados por seus parentes ou hóspedes, tinham que aprender o texto e preparar-se para a redditio Symboli, isto é, para a recitação dele em público.

Oito dias antes da Páscoa, ao canto do galo, depois de uma noite de orações, fazia-se a primeira cerimônia ritual, em que se iam sucedendo o exorcismo solene, a renúncia a Satanás, e a recitação do Símbolo. O S 216 foi pregado nesta ocasião.

É a cerimônia do escrutínio (scrutatio). Agostinho raramente pronuncia a palavra (S 216; De fide et operibus, 9). Trata-se de uma prova diferente dos exorcismos habituais, é o exorcismi sacramentum, segundo a expressão do S 227. Compreendia sem dúvida um exame corporal («Dando-vos o parabéns, nós vos exortamos a guardar em vossos corações a saúde que se pôde verificar em vossos corpos»; S 216, II).

Mas o essencial passava-se diante de toda a multidão. O candidato era «examinado», isto é, provado pela humilhação do último e do mais solene dos exorcismos. («Temos agora a prova de que estais indemnes dos espíritos do mal»; S 216, 11). De fato, quando despido, sonolento, estômago vazio, mal lavado, pés descalços, cabeça baixa, o candidato ao batismo recebia o hálito do exorcista e ouvia as imprecações contra o misterioso hóspede que tinha dentro e declarava renunciar às pompas do século, submetera a boa prova o seu orgulho e pusera em transes de agonia o «homem velho».

Este exorcismo compreendia a ex-suflação, a imposição das mãos e fórmulas. O gesto de ex-suflação que nos parece esquisito, tinha para os homens daquele tempo uma significação clara; era sinal de desprezo, de sentido intermédio entre o nosso «apupar» e o nosso «escarrar em». Tal sinal, feito às estátuas do imperador, era castigado como crime de lesa-majestade. A fórmula de maldição contra Satanás («Amontoamos contra ti todas as maldições merecidas pela tua malvadez»; S 216, 6) foi-nos transmitida numa das suas formas por Optato de Milevo: «Fora, maldito!»

A imposição das mãos completava a obra da ex-suflação: Pela invocação do nome de Jesus Cristo («o que fazemos em vós, conjurando o nome do vosso redentor»; S 216, 6), em nome da Santíssima Trindade («quando o ameaçavam com todo o poder da veneranda Trindade»; ibid. 11) é que Satanás é obrigado a fugir. Começa então a realizar-se a passagem das trevas para a luz, celebrada pelo texto de S. Paulo Ef 5, 8: «porque outrora fostes trevas, agora porém sois luz no Senhor», que, com o versículo de Col 1, 13 havia de ter sua ação na liturgia do exorcismo.

A circunstância de se despir e de se pôr de pé sobre o cilício era um rito particular do exorcismo do escrutínio. O cilício é uma pele de cabra, ou, com mais exatidão, um tecido grosseiro de pêlos de cabra. O estar sobre o cilício indica-se numa frase um pouco obscura do 5 216, 10: «Não estáveis vestidos de cilício, mas estáveis misticamente de pé sobre ele.» Estar misticamente de pé sobre o cilício é calcar aos pés materialmente a pele de cabra e intencionalmente o pecado que ela simboliza. É um rito de renúncia. Desconhecido em Constantinopla, em Roma e Milão, na Gália, encontra-se em Antioquia, em Edessa, na África (Cartago e Hipona), será mais tarde atestado na Espanha. O estar de pé era talvez precedido de uma prostração.

A renúncia é a declaração que o candidato faz, não a Satanás, mas segundo os tratados pseudo-agostinianos, a Deus e aos Anjos, secretários de alistamento. «Não é aos homens, mas a Deus e aos Anjos que recebem a vossa inscrição (conscribentibus) que vós dizeis: Renuncio, etc, …» (Ps. Aug. III, 1). Por isso o termo projessio emprega-se com freqüência em vez de «renúncia». Em Hipona e Cartago a fórmula era a mesma: Renuntio diabolo, pompis et angelis ejus (Renuncio ao diabo, às suas pompas e anjos; cf. S 215, 1 e Ps. Aug. I, 2; III, 1) Agostinho não comenta o termo pompae.

A menção da conversio, em Agostinho vem após a renuntiatio. É tal a freqüência do termo neste sentido que temos de pensar que ele é litúrgico. Ocorre muitas vezes associado a credere. De fato renúncia-conversão é um rito único em dois tempos, com uma declaração em cada um. O candidato afasta-se primeiro de Satanás e anuncia o seu ato (aversione ac pia renuntiatione; S 216, 6). A seguir volta-se para Deus e faz declaração disso (praebete consensum; convertere et redi ad dominum tuum (Dai o consentimento, volta-te e torna ao teu senhor; S 216, 10).

Sabemos qual era a fórmula da renúncia. Qual seria a do consensus. Tudo leva a crer que era a recitação do Símbolo. Merece leitura atenta o passo seguinte: «Quando se responde que a criança crê … responde-se que tem fé, por causa do sacramentum fidei e que se volta para Deus por causa do sacramentum conversionis, pois que esta resposta faz parte da celebração do sacramentum» {Epist. 98, 9). Como o sacramentum fidei se põe em paralelo exato com o sacramentum conversionis, segue-se que o sacramentum fidei não é o próprio batismo, se por batismo entendermos o que Agostinho chamava sacramentum fontis et baptismi, mas a prolação da palavra credo, o ato de adesão ao Símbolo; precisamente o rito que Agostinho noutras partes chama sacramentum symboli (S 228, 3).

Quando encontramos os termos aversio e conversio pensamos no gesto, atestado por outros rituais, com que o candidato se afasta do Ocidente, símbolo do poder das trevas, e se volta para o Oriente, símbolo de Cristo-Luz; mas em Agostinho nada realmente nos autoriza a falar de tal gesto. Digamos, pois, que, nele, Renuníiatio et Redditio Symboli (Renúncia e Recitação do Símbolo) se apresentam como dois tempos do mesmo único rito, cada um dos quais tempos compreende uma atitude, ao menos espiritual, e uma declaração. Para designar o primeiro tempo atendeu-se à declaração e deu-se-lhe o nome de Renúncia; para designar o segundo Agostinho reparou na atitude e fala de conversio.

Aversio e conversio, Renúncia e Símbolo, completam-se entre si, e é necessário que a renúncia preceda o Símbolo (cf. S 368, 3; En. in Ps. 9, 10; De duabus anim. contra Man. 10), pois, para ter a liberdade de se unir a Deus, o cristão deve antes renunciar ao mundo. Nestas condições, compreende-se que se o exorcismo não é reiterado para os candidatos ao batismo que já receberam (ou antes «guardaram») o Símbolo e que portanto já são fiéis, não há inconveniente em repetir as fórmulas de renúncia e de profissão de fé, repetição que se fará no momento das perguntas do batismo.

Como consta dos tratados pseudo-agostinianos, fazem parte integrante da liturgia do exorcismo maior alguns «cânticos espirituais» (Pi. Aug. III, 1). Neste campo cada igreja devia ter as suas tradições. Em Hipona o canto da cerimônia era o Sl 26. «O novo soldado de Cristo (tiro Christi) diz chegando à fé: O Senhor é a minha luz e salvação.» Se a En. in Ps. 26, I, 1, não nos desse este pormenor tão determinado, podíamos deduzi-lo do S 216.

Efetivamente, o exórdio, bem considerado, escolhe o salmo para fundamento e base da instrução, coisa que freqüentemente se dá com um ou outro dos textos litúrgicos. O nome dos competentes é explicado a começar do versículo 4: Unam petii a domino. A seguir há uma alusão ao versículo 4 (delectationem que é a palavra da versão agostiniana em vez da voluptatem da Vulgata; 5 216, 2), outra alusão ao mesmo versículo (votum que lembra petii; S 216, 8), uma citação do versículo 13 (216, 5) e do versículo 10 (216, 8) e talvez ainda uma alusão ao versículo 2 (illuminat; S 216, 11). Finalmente o versículo 10 é comentado com bastante semelhança em 216, 8 e na En. in Ps. 26, II, 18: Babylonia-Jerusalém. «Conhecemos outra mãe, a Jerusalém do céu, … deixamos Babilônia», com o eco do rito da renúncia: «Conhecemos outro Pai, deixamos o diabo.»

O comentário do salmo no S 216 prova que se cantava o salmo todo e não só o versículo. O leitor cantava ou lia o salmo, e a assistência retomava a antífona como sabemos por outros sermões agostinianos (cf. S 351, 1; En. in Ps. 132, 1, etc).

Entre os outros salmos citados (SI 2, 16, 18, 23, 33, 35, 41, 71, 72, 94, 141, 147), dois têm com certeza emprego litúrgico na preparação para o batismo: o salmo 41, que, segundo dissemos, se cantava nos dias da inscrição dos competentes (podia acompanhá-los na preparação até, inclusive, ao batismo), o Sl 35, que devia ter função, mais ou menos igual, se tivermos em conta a abundância das alusões que se lhe fazem na pregação pascal. Finalmente talvez deva meter-se na lista dos «cânticos espirituais» do Escrutínio um quarto salmo. Efetivamente o Sl 33 cita-se quatro vezes (versículos 2, 3, 4, 6). Versículo 6: «Vai ter com Ele para ser iluminado» (citado em 216, 4) corresponde ao Sl 26, 2: «O Senhor é minha luz e salvação.» Ser iluminado, é equivalente, na língua de Agostinho, a crer, e no contexto batismal há quatro expressões que parecem ter indiferentemente o mesmo sentido: voltar-se para Deus, chegar à fé, crer, ser iluminado.

Na grande Vigília pascal, antes da recepção do batismo, repetiam-se porventura os ritos do exorcismo? Cuidamos que não. O caráter de unicidade que eles tinham parece sublinhado pelo final do S 216: os competentes acabam de sair incólumes de uma prova particular; dão-lhes por isso os parabéns, mas como quem fala do passado. Ora isto durante a Vigília pascal não podia ser, como pensa W. Rötzer, porque o contexto sugere todo ele uma dilação notável antes da recepção do batismo.

Por outra parte, julgamos que se pode concluir para o carater singular dos ritos do Exorcismo maior com fundamento na relação Exorcismo-Renúncia-Símbolo, tal qual aparece nos sermões de Agostinho e nos tratados pseudo-agostinianos.

O Símbolo é o sinal de um contrato concluído com Deus: «O Senhor começa convosco um contrato (inchoat pactum) … Com a venda e o mercado da fé, o reino dos céus está proposto à vossa compra» (cum auctione et mercatu fidei; S 216, 2, 3.) Doravante Satanás tem que abrir mão das suas pretensões aos bens que se tornaram bens de Deus e isto conforme o direito (iste vos jure derelinquet). É, pois, evidente que não se pode «ter», guardar o Símbolo sem ter antes renunciado a Satanás e, sobretudo, sem se ter antes desembaraçado dele. Mas, depois o Símbolo torna-se defesa contra os ataques que ele renovasse. «Cobri-vos com a proteção do vosso Símbolo.» {De symbolo 1).

Esta é a primeira fase da ordo curationis: livrar-se de Satanás pelo exorcismo do Escrutínio e afastar-se dele pela Renúncia, é o sacramentum conversionis; ligar-se a Deus na redditio Symboli (profissão do Símbolo) é o sacramentum fidei.