Paráfrase de Sem [KDNH]

Excertos de do livro de R. Kuntzmann e J.-D. Dubois, trad. de Álvaro Cunha
A Paráfrase de Sem (VII,1)

A Paráfrase de Sem, título antigo do documento, valoriza Sem como receptor de revelação secreta, enquanto o interpretação livre de texto, mas sim no sentido de variação meditativa sobre ideia fundamental, expressa sob diferentes imagens. Paráfrase de Sem repousa sobre a seguinte ficção literária: Sêêm (ortografia do tratado) é arrebatado ao céu e recebe uma revelação de Derdekeas (p. 1,4) sobre a cosmologia, a soteriologia e a escatologia. Como compreender essas indicações científicas? Se o título completo do tratado — ou seja, Paráfrase de Sem. Paráfrase a Propósito do Espírito Incriado — pode nos colocar no caminho desse entendimento, três outros fatores também devem ser levados em conta, ou seja, os três níveis de leitura do microcosmos humano, do macrocosmos universal e da polêmica antibatismal e antieclesial. Nos dois primeiros níveis, de modo paralelo, é exposta a história da salvação, que pode ser assim resumida: três forças primordiais, a Luz, o Espírito (pneuma) e a Trevas, constituem a tríade original; ora, eis que o Noûs, intelecto ou alma universal, prisioneiro das forças das trevas, tenta se libertar; a Grandeza suprema envia-lhe seu filho Derdekeas para apressar sua libertação; ao nível do macrocosmos do Universo, o aparecimento de Noûs nas Trevas provoca toda uma série de reviravoltas cosmológicas, cujos pormenores dão ao tratado o contorno de lição filosófica.

A chave de leitura atenta para a polêmica anti-batismal também conduz a certo entendimento do tratado. O texto trata de práticas batismais de grupos difíceis de identificar. Paráfrase de Sem substitui o “batismo de erro” (p. 31,16-17) ou “da impureza da água” (p. 37,22-23), que remete sem dúvida ao batismo de João Batista (Mc 1,4ss), por um rito espiritualizado que não simboliza mais uma descida à água das trevas, mas uma elevação para a luz (vestimenta com roupas de luz, voz celeste, centelha de luz).

Essa releitura do batismo ritual desbota a originalidade da figura do Salvador. Para dizer a verdade, o escrito quase não cita o Novo Testamento e as raras alusões que podem ser discernidas referem-se sobretudo ao batismo de João, como na p. 32,5-12:

Então eu desci na água graças ao demônio e turbilhões de água e de chamas de fogo lançaram-se contra mim. Então eu me reerguerei da água depois de me ter revestido da luz da fé e do fogo inextinguível.

Esse texto parece remeter a Mc 1,10 e paralelos por causa da saída da água. O relato do batismo de Jesus não é interpretado, servindo apenas para descrever o aprisionamento do intelecto nas trevas e sua libertação pela descida do Salvador Derdekeas ao meio das águas da treva. O Salvador de Paráfrase de Sem desce às trevas tomando aparência multiforme como a serpente (p. 15,14; 19,16.27; 20,31) e aparece como se fosse o Filho (p. 20,1). Sua figura é próxima da figura do Cristo neotestamentário, mas, no entanto, dela difere por sua dimensão gnóstica.

Apresentamos a seguir algumas passagens deste tratado, que é o mais bem conservado de tudo o que foi descoberto. O quadro do mito é apresentado nas p. 1,26-2,5:

Havia uma Luz e Trevas — e um Espírito entre os dois… A Luz era Pensamento, plena da audição da palavra (logos), unidos em uma só forma. E as Trevas eram sopro sobre as águas (cf. Gn I,2): elas haviam revestido o intelecto (Noûs) de fogo turbulento. E o Espírito (pneuma) que estava no meio delas era luz doce e discreta. Eis os três princípios de base.

Foi revelando-se às Trevas que o Espírito se difundiu, despendendo uma parte de sua luz. A Luz suprema, por seu turno, revelou-se ao Espírito por seu Filho, sem se dispersar (p. 3,30-4,12):

Então se manifestou a Luz superior, infinita: ela estava muito alegre. Ela queria se revelar ao Espírito. E a semelhança da Luz superior apareceu ao Espírito incriado. E eu apareci, o Filho da Luz imaculada, infinita. Apareci na semelhança do Espírito. Pois eu sou o raio da Luz universal e sua manifestação, para que o intelecto das Trevas não permaneça no Hades. Com efeito, as Trevas se haviam feito o igual de seu intelecto em uma parte dos membros (do Espírito).

As p. 30,21-31,22 polemizam contra as práticas batismais. Quem fala é Derdekeas:

Nessa época, com efeito, o demônio aparecerá por cima do rio para batizar com batismo imperfeito e perturbar o mundo com local de água. Eu, ao contrário, devo aparecer com os membros do Pensamento da Fé, a fim de revelar a (grandeza) de minha força. Eu o (= o Pensamento da Fé) separarei do demônio, que é Soldas. E misturarei a Luz que ele tem do Espírito com a minha veste invencível e com aquilo que revelarei nas Trevas para ti e tua descendência, que será protegida da maldade das Trevas. Sabe, ó Sem, que sem Elorcaios, Amoias, Estrofaias, Xelkeak, Xelkea e Aileu ninguém passará por essa má região. Pois dou testemunho de que triunfei sobre essa má região. E tomei a Luz do Espírito da água terrificante. Com efeito, quando chegam os dias fixados para o demônio, ele que administra um batismo de erro, eu aparecerei no batismo do demônio a fim de revelar, pela boca da fé, um testemunho para aqueles que lhe (= à fé) pertencem.

Esses textos são suficientes para dar ideia deste tratado. A figura do Salvador Derdekeas, promotor de batismo interior de separação das trevas, mostra que as esferas exteriores à Grande Igreja procuram definir melhor os caminhos da salvação. Sinal de certa coerência temática no interior dos diversos códices de Nag Hammadi, Paráfrase de Sem parece abrir polêmico relatório antieclesiástico que os dois tratados seguintes, Segundo Tratado Grande Set e Apocalipse de Pedro, desenvolvem.