Jean Canteins: A PAIXÃO DE DANTE ALIGHIERI
Entre os cantos para as saudações (cantadas à ocasião da exposição do Santo Sacramento) dois dentre eles levam o título: Panis angelicus e Ecce panis angelorum. O canto de fechamento Tantum ergo faz expressamente alusão ao “pão descido do céu” (Jo VI 33 e 41). Este pão é qualificado indiferentemente de “pão de rota” (cibus viatorum — a palavra cibus se encontrando na expressão cibus angelorum: “alimento ou pão dos anjos”), “pão das crianças” (panis filiorum, os pequeninos, únicos garantidos de entrar no Reino do Céu, cf. IIIa Parte), “pão celeste” panis caelicus, “pão verdadeiro” (panis vere), etc. O “Pão dos Anjos” designa portanto o pão trans-substanciado em corpus Christi oferecido ao fiel quando da Comunhão. A este sentido imediato se sobrepõe um sentido conforme a uma interpretação integral ou absoluta da Eucaristia que poder ter estado oculta ou relativizada pelo rito da manducação: o “Pão dos Anjos” é o Cristo ele mesmo. Esta antonomásia se infere do intitulado de um dos cantos mencionados: Ecce panis angelicorum. Este Ecce ostentatório deve ser entendido em eco das duas famosas fórmulas começando pelo mesmo advérbio e pronunciadas em circunstâncias solenes para anunciar ou apresentar Jesus Cristo em pessoa, a saber o Ecce agnus Dei que tollit peccatum mundi (Jo 1, 29) e o Ecce homo de Pilatos.
A expressão “Pão dos Anjos” conota a dupla natureza do Cristo: de um lado, o pão, que participa do humano, do terrestre e do natural; de outro, o Anjo, que participa do divino, do celeste e do sobrenatural. Em unindo indissoluvelmente os dois termos, a preposição “de” determina de fato entre eles uma relação de transubstanciação, dito doutro modo a expressão enuncia um estado de fato do qual o Cristo — Deus-Homem e Homem-Anjo — é o garantidor posto que, enquanto Rei dos Anjos, ele se fez homem para que o homem possa comer deste “Pão” dito dos Anjos, conforme os mistérios da Eucaristia.
Ao mesmo tempo hóstia e Pessoa crística, o “Pão dos Anjos” designa o Filho de Deus em nós. Este sentido recebeu a caução de Santo Agostinho (Sermão 194, PL 38.1016), de São Boaventura (In Cena Domini, sermão 1) e da liturgia (bendição do Santo Sacramento). Se a referência ao “Pão dos Anjos” é portanto teologicamente sem ambiguidade, ela não é linguisticamente sem anfibologia e é o que Dante pode apreciar empregando a expressão para se pôr em imitador do Cristo sem ir até a reivindicar abertamente os poderes sacramentais. Em caracterizando por sua atitude a “estender o pescoço para o pão dos anjos” (Par. 11.10-11) o pequeno número de seus semelhantes capazes de virar as costas ao mundo para tentar em seguida a venturosa Peregrinação para o outro mundo, Dante resta voluntariamente alusivo e entretém a dúvida sobre o que está verdadeiramente em causa sob a fórmula; mais que o Cristo, não Dante ele mesmo ou mais exatamente, não é Dante através e sob uma denominação específica ao Cristo, que é aí designado? A exortação a imitar a Paixão do Cristo deve fazer do Peregrino um exemplo para todos os candidatos presente e futuros. O poeta entrando no Paraíso lançou um apelo cuja força de atração não está perto de se extinguir e é em tal contexto que pôde se aplicar o epíteto crístico sem arriscar certamente ser anátema.