Vimos, além disso, que o processo pelo qual o Pai gera o Filho na alma é o processo de produção da sua própria “imagem”: “O Pai celeste traz em mim a sua própria imagem” (Q, 220,16-7/ Serm., 239). Recordamos que não bastava que o Filho fosse apenas como o Pai para ser Sua Imagem; também era necessário que Ele fosse sustentado em Seu ser como imagem pelo Pai. Agora, a explicação de Heidegger sobre a relação entre o Ser e o Dasein está notavelmente em conformidade com o que Eckhart exige de uma “imagem e relação verdadeiras”:
Mas como o Ser está relacionado com a ek-sistência, desde que possamos fazer esta pergunta de forma tão precipitada? O próprio ser é a relação (Verhältnis) na medida em que [=Ser] contém (hält) a ek-sistência (Ek-sistenz) em sua essência existencial, isto é, essência ex-estática (Wesen) em si e a reúne [=Eksistenz] para ela mesma como morada da verdade do Ser no meio dos seres. (GA9)
Heidegger aqui e em outros lugares (GA8, 1/3-4) explora a raiz “halten” na palavra Verhältnis: o Dasein é “mantido” em sua relação com o Ser pelo próprio Ser. Na “Introdução” ao O que é Metafísica?, Heidegger refere-se a “um pensamento que ocorreu pelo próprio Ser” (GA9), isto é, que é considerado pensado pelo próprio Ser. E no “Epílogo” das mesmas obras diz:
O ser não é produto do pensamento. Pelo contrário, na verdade, o pensamento essencial é um acontecimento do Ser (Ereignis des Seins). (GA9)
A relação do Dasein com o Ser não é obra do Dasein, mas do Ser. O pensamento do Ser (onde o “de” é um genitivo objetivo) é o pensamento do Ser (onde o “de” é um genitivo subjetivo). Pensar não é algo que o homem seja capaz sozinho. O pensamento acontece no homem, mas não pelo homem.
Assim, numa frase que poderia muito bem ter sido escrita pelo próprio Meister Eckhart, Heidegger diz:
Um relacionamento com algo seria um relacionamento verdadeiro se [=x] for mantido em sua própria essência [=x] por aquele [=y] com o qual está relacionado. (Gelassenheit, 50)
Isso atende exatamente ao requisito de Eckhart de uma “imagem verdadeira”. A relação do Dasein com o Ser não é o “fazer” do Dasein, mas do Ser. O próprio Ser coloca o Dasein em relação consigo mesmo e sustenta essa relação. Para o primeiro Heidegger, a relação do Dasein com o Ser parece ter se originado no próprio Dasein e ter dependido da capacidade do Dasein de sustentar essa relação. Assim, a questão do Ser depende da capacidade do homem para a levantar e responder, da capacidade do homem para romper a acumulação de preconceitos e presunções sobre o Ser, a fim de realmente colocar a questão do Ser de uma forma nova. A capacidade de questionar é em si uma medida da capacidade de resolução do Dasein, da sua vontade de saber (GA40). Mas parece ter sido uma das realizações decisivas do Heidegger posterior, e também do Heidegger que começou cada vez mais a assumir uma semelhança com os místicos, que o Ser não surge como a “resposta” a uma “questão”. (GA14). É a própria tentativa de interrogar o Ser, de fazê-lo prestar contas de si mesmo ao homem, que deve ser abandonada. O “questionamento” submete-se à exigência do princípio de Leibniz de fornecer uma razão suficiente. Mas o Ser, como vimos, não tem porquê; devemos deixar o Ser existir por si mesmo. Até mesmo o “porquê” da questão do Ser – por que existe algo em vez de nada – deve ser abandonado. O “porquê” deve dar lugar ao “porque” (GA10). O ser não surge como resposta a uma pergunta, mas como um “presente”, um “favor” (Gunst: GA9), que é concedido ao homem. O Ser é pensado porque o Ser “se entrega ao pensamento” (GA8). Somos dotados (begabt) do dom (Gabe) do pensamento pelo próprio Ser (GA8).
Isto está de acordo com o que Eckhart diz sobre o nascimento do Filho. O nascimento do Filho é obra de Deus, não da alma, embora seja necessária a colaboração e a cooperação da alma (Q, 94,27/Cl., 102). A imagem do Pai que é gerada na alma é engendrada pelo Pai:
A obra é tão própria Dele [o Pai] que ninguém além do Pai é capaz de realizá-la. Nesta obra, Deus efetua todas as Suas obras; o Espírito Santo depende disso e [assim] todas as criaturas. Se Deus efetua esta obra que é o Seu nascimento na alma, então este nascimento é Sua obra, e o nascimento é o Filho. Deus efetua esta obra no mais íntimo da alma, e de uma maneira tão oculta que nem um anjo nem um santo sabem porquê, e mesmo a própria alma não pode fazer outra coisa senão suportá-la. Pertence exclusivamente a Deus. (Q, 376,32-377,6/Ev., 125)
No entanto, Eckhart diz que a própria alma carrega o Filho:
Da mesma forma, quando Ele carrega Seu Filho unigênito em mim, eu O trago de volta no Pai. (Q, 258,30-1/Serm., 214)
Mas Eckhart quer dizer que a alma “co-carrega” (mit-gebiert: Q, 161,28/Serm., 135) e co-opera (mitwirkt: Q, 94,10-27/Cl., 102) com o Pai ao dar à luz o Filho. A alma tornou-se tão totalmente unificada com Deus que a obra do Pai tornou-se também a obra da alma. A obra de Deus e a minha são a mesma coisa (Q, 176,16-7/Serm., 235). Seu trabalho é meu trabalho e meu trabalho é Dele. Eckhart não pretende sugerir que a alma separada do Pai poderia gerar o Filho, assim como Heidegger não sugeriria que o Dasein está em posição de convocar ou comandar o Ser para a revelação (G, 65-6/84). O Dasein e a alma são humildes e pobres: preparam um lugar de abrigo para um hóspede sobre o qual não têm autoridade.