Orígenes — Tratado da Oração — Comentário ao Pai Nosso
XVIII A oração do Senhor
1 Até aqui, segundo a graça concedida por Deus pela mediação de seu Cristo no Espírito Santo (espero que os leitores deste escrito possam julgar ter sido bem assim), desenvolvemos uma suficiente exposição do problema da oração.
Agora, pois, me dedico ao trabalho seguinte, considerando a força de que é cheia a oração que nos foi ensinada pelo Senhor.
2 Antes de tudo, deve-se observar que a muitos poderia parecer que Mateus e Lucas reproduziram a mesma forma da oração que nós devemos seguir.
As palavras de Mateus têm a seguinte redação: “Pai nosso, que estás no céu, santificado seja o teu nome; venha o teu reino, seja feita a tua vontade assim na terra como no céu; o pão nosso de cada dia nos dá hoje; perdoa-nos as nossas ofensas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores; não nos induzas em tentação, mas livra-nos do Maligno” (Mt 6,9-13). A fórmula de Lucas é esta: “Pai, santificado seja o teu nome; venha o teu reino, dá-nos cada dia o pão necessário e perdoa-nos os nossos pecados, porque nós também perdoamos a quem nos deve, e não nos induzas em tentação” (Lc 11, 2-4).
3 Aos que pensam como acima dissemos, convém em primeiro lugar observar que, embora semelhantes entre si, as palavras aparecem bem diferentes em outros pontos, como tentaremos demonstrar.
Em segundo lugar, não é possível que a mesma oração tenha sido dita em dois lugares diferentes: primeiro, sobre a montanha aonde ele subiu, ao ver as multidões; “depois que ele se sentou, vieram os discípulos, e ele, abrindo a boca, ensinava”. A versão de Mateus se insere no contexto em que se proclamaram as Bem-aventuranças, seguidas de alguns preceitos (Mt 5,1-2).
Já a outra versão, de Lucas, foi dita “em certo lugar onde ele estava a orar, quando cessou” — a um dos discípulos que lhe pedira que lhes ensinasse a orar, “como João ensinava aos seus discípulos” (Lc 11,1).
Como pode acontecer que as mesmas palavras tenham sido ditas ora sem prévia interrogação e num sermão, e sejam proferidas a pedido de um discípulo?
Talvez diga alguém que as orações contêm a mesma coisa, embora uma fosse dita no conjunto do sermão e a outra, a pedido de um discípulo que teria estado ausente ou não teria retido a fórmula que consta em Mateus. Mas não seria, acaso, melhor pensar que se trata de orações diversas, com algumas partes comuns? Procurando no evangelho de Marcos se aí havia alguma oração desse gênero com o mesmo significado, nenhum traço encontramos.
A introdução ao Pai nosso
Como dissemos acima, é necessário que, antes de tudo, o orante esteja bem disposto e preparado e que, só então, se ponha a orar. Cabe-nos agora ver o que o Salvador nos diz da oração, antes da fórmula transmitida por Mateus. É o seguinte: “Quando orais, não façais como os hipócritas, que gostam de orar, de pé, nas sinagogas e nas esquinas das praças, para serem vistos pelos homens. Em verdade vos digo, já receberam a sua recompensa. Tu, ao contrário, quando ora-res, entra no teu quarto e, fechando a porta, ora a teu Pai em segredo, e o teu Pai, que te vê no segredo, te recompensará. Quando orardes, não multipliqueis as palavras como os pagãos, pois acreditam que são ouvidos pelo seu palavrório. Não vos igualeis, pois, a eles, porque o vosso Pai sabe aquilo de que tendes necessidade, antes mesmo de o pedirdes a ele. Orai, portanto, assim” (Mt 6,5-9a).
Em muitas passagens, aparece claramente que o nosso Salvador combate a vangloria como uma doença mortal. É o que ele faz também aqui, proibindo a prática de atos hipócritas no tempo da oração. Porque é próprio dos hipócritas fazer alarde da sua piedade e liberalidade na presença dos homens. Lembremo-nos destas palavras: “Como podeis crer, vós que rece-beis glória uns dos outros e não buscais a glória que vem de Deus só?” (Jo 5,44).
Desprezemos, portanto, toda glória que vem dos homens, mesmo se ela parece derivar de algo de belo. Busquemos, sim, a glória genuína e verdadeira, que nos é dada só por aquele que glorifica em verdade a quem for digno disto, e o faz de modo superior aos seus méritos.
Tudo, pois, que pode ser considerado virtuoso e louvável, perde o seu valor quando agimos para que nos vejam e para colher o aplauso dos homens (Mt 6,2.5). É por isso que não recebemos recompensa de Deus em tais casos.
Se é certo que toda palavra de Jesus é verdade, poderíamos dizer, se me permitis, que ela é ainda mais verdadeira, quando a diz, usando a sua expressão habitual de juramento.
Ora, ele diz daqueles que parecem fazer o bem ao próximo em vista da glória humana, ou que oram nas sinagogas ou nos cantos das ruas para ser vistos pelos homens: “Em verdade vos digo: já receberam a sua recompensa” (Mt 6,5).
De igual modo, o rico de que fala Lucas, recebeu os bens na sua vida terrena e não pôde, por isso, obtê-los depois desta vida (cf.Lc 18,25).
Assim, o homem que recebe a sua recompensa por dar algo a outros ou por sua oração, havendo semeado não no espírito mas na carne, colherá a corrupção e não a vida eterna (cf Gl 6,8).
Semeia na carne aquele que dá esmola nas sinagogas e nas ruas, ao som de trombetas, para ser glorificado pelos homens.
Ou quem gosta de orar de pé nas sinagogas ou nas esquinas das praças para ser visto pelos homens e julgado mais santo e piedoso pelos que o vêem.
3 Todo aquele, com efeito, que toma a via larga e espaçosa que conduz à perdição (cf. Mt 7,13) e não tem nada de direta, mas é toda oblíqua e cheia de curvas (pois a reta está muitas vezes cortada), esse homem não está bem, orando mal “nas esquinas das praças” (Mt 6,5).
Ávido de prazer, ele se coloca não em uma só, mas em muitas praças, lá onde “morrem como homens” (Sl 81,7) por seu afastamento da Divindade, ele celebra e proclama bem-aventurados aqueles que, na sua opinião, cultivam piedade idêntica à sua.
Muitos há, com efeito, que ao orar parecem mais amigos do prazer do que de Deus (cf. 2 Tm 3,4), pois se dedicam à oração em meio a banquetes e em embriaguez; eles, de fato, estão nas praças públicas a orar.
Quantos, na verdade, vivem segundo o prazer e amam a via larga, abandonando o caminho estreito e áspero de Jesus Cristo, o caminho sem curvas nem ângulos?