Origenes Praescientia

Orígenes — Tratado da Oração
VI A presciência de Deus
2 Estas poderiam ser as razões dos que combatem a oração, embora afirmem um Deus que governa o universo e aceitem a Providência. Não pretendo agora examinar o que dizem aqueles que rejeitam totalmente a Deus e a Providência. É assim que propõem seu pensamento: Deus conhece todas as coisas antes que comecem a existir e nada de quanto existe lhe é conhecido só quando se realiza, pois já antes disso lhe era conhecido. Que necessidade, pois, de dirigir uma oração Àquele que, antes que o façamos, já conhece aquilo de que precisamos? “O Pai celeste já conhece aquilo de que precisamos, antes que a ele pecamos” (Mt 6,8). E isto parece justo, porque o Pai e Criador do universo “ama todos os seres e não sente desgosto por nenhuma das coisas que criou” (cf. Sb 11,24).

De um modo salutar, Deus dispensa a cada um o que lhe é necessário, sem que seja preciso de o pedir. É como um pai que vela por seus filhos, sem esperar que eles lho peçam, ou porque são muito pequenos para pedir, ou porque desejam por ignorância ter justamente o contrário do que lhes é proveitoso e benéfico. E nós humanos somos bem mais distantes de Deus que a idade infantil é do coração dos seus pais,

3 É natural que Deus não só conheça o futuro, mas que também o predisponha, para que nada aconteça sem que seja por ele previsto.

Assim, se alguém rezasse para que o sol se levante, seria considerado um tolo, ao pensar que acontece por sua oração £ aquilo que se dá sem ela.

Igualmente, insensato seria o homem que pensasse advir-lhe pela prece tudo que lhe viria, mesmo sem ela. Mas ultrapassa todo limite da loucura aquele que sofre pelas queimaduras do sol de verão em regiões quentes e pensa que por sua oração pode mudar a temperatura do sol como se estivesse na primavera.

Do mesmo modo, superaria todo grau de loucura aquele que pensasse por sua oração escapar às condições inevitáveis que são impostas ao gênero humano.

4 Se “os pecadores se transviaram desde o seio materno” (Sl 57,4), e se “o justo é escolhido desde o seio materno” (Gl 1, 15) e “antes de nascer e de cometer qualquer coisa de bem ou de mal, de modo que o desígnio de Deus se manifesta por pura eleição e não pelas obras, porque o maior servirá ao menor” (cf. Rm 9,11) — é supérfluo orarmos pela remissão dos pecados, ou para recebermos o Espírito de fortaleza, a fim de que tudo possamos, ajudados pela força de Cristo (cf. Fl 4,13).

Se, pois, somos pecadores, somos transviados já desde as entranhas maternas; se somos predestinados desde o seio de nossa mãe, obteremos a parte melhor, mesmo sem a ter pedido. Que orações tinha feito Jacó, do qual foi predito, antes que nascesse, que dominaria a Esaú e que este haveria de servi-lo? Que falta havia cometido Esaú para ser odiado antes de nascer? E por que ora Moisés, como faz no Salmo 89, se Deus é um refúgio desde antes que se formassem as montanhas e que existissem a terra e o mundo? (cf. Sl 89, 1-2). (…)

5 De todos os que devem ser salvos está escrito na Carta aos Efésios que “o Pai os elegeu nele, isto é, em Cristo, antes da criação do mundo, para que fossem santos e imaculados em sua presença, na caridade. Predestinou-os em vista da adoção como filhos por Jesus Cristo” (Ef 1, 3-5). Em conseqüência, portanto, nenhum dos eleitos antes da criação do mundo, pode perder tal eleição, e assim, não precisa de orar.

Se, ao contrário, não foi eleito nem predestinado, ora inutilmente, e a sua oração, mesmo se for repetida mil vezes, não será ouvida. “Pois os que ele de antemão conheceu, os predestinou a serem conformes à imagem do seu Filho. Aqueles que predestinou, ele os chamou; aqueles que chamou, ele os justificou; aqueles que justificou, ele os glorificou” (Rm 8, 29-30).

Por que, afinal, Josias estava ansioso por saber o que pedir e se a sua oração seria ouvida ou não, se o profeta vaticinara seu nome, muitas gerações antes, e tudo quanto haveria de fazer fora não só conhecido de antemão, mas até mesmo anunciado diante de muitos ouvintes?

Por que também rezaria Judas, de tal modo que até a sua oração se tornaria pecado, se desde os tempos de Davi fora predito que o seu episcopado lhe seria tirado e um outro o sucederia em seu lugar? (cf. Sl 108, 7-8).

Por isto, considerando que Deus é imutável, prevê todas as coisas e permanece fiel aos seus decretos, não convém orar a Deus, opinando que a oração mudará o plano de Deus, como se ele não tivesse determinado tudo e ficasse a esperar a oração de cada um para ajeitar as coisas segundo as conveniências de quem ora, e só então ordenasse o que é reto, em vez de o prever.

6 A respeito do que precede, vou colocar aqui, usando as tuas próprias palavras, o que me escreveste em tua carta: Primeiro: se Deus conhece de antemão o futuro, tal como deve acontecer, vã é a oração.

Segundo: se tudo se faz segundo a vontade de Deus, são firmes os seus decretos, e nada do que ele quer pode ser mudado, vã é a oração.

Necessário é, pois, a meu ver, ter presentes estes pontos, para responder às objeções que se movem contra a oração.