Orígenes Perdoai as nossas dívidas

Orígenes — Tratado da Oração

XXVIII Perdoa-nos as nossas ofensas

1 “E perdoa-nos as nossas ofensas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores”. Ou, segundo Lucas, “E perdoa-nos os nossos pecados, porque nós também perdoamos a quem nos deve” (Mt 6,12; Lc 11,4).

Com relação a dívidas, fala também o Apóstolo: “Dai a cada qual o que se lhe deve: os impostos a quem são eles devidos; a quem o tributo, o tributo; a quem o temor, o temor; a quem a honra, a honra. Não fiqueis em nada devedores a ninguém, a não ser o amor recíproco” (Rm 13,7-8). Estamos, pois, em dívida e temos certos deveres não só quanto a dar, mas também quanto a falar com amabilidade e praticar determinadas ações, e temos de ter uns com os outros tais disposições de coração. Somos responsáveis por nossos sentimentos relativos ao próximo.

Estes débitos nós os saldamos, realizando aquilo que nos ordena a lei divina; se, ao contrário, desprezamos a sã razão, ficamos em débito.

2 De modo semelhante devemos avaliar os nossos deveres em relação aos irmãos, seja porque regenerados conosco em Cristo pela palavra da verdadeira piedade, seja porque descendem do mesmo pai e mesma mãe.

É uma obrigação também para com os nossos concidadãos e, igualmente, com todos os homens.

Em particular, somos devedores para com os hóspedes e pessoas de idade que poderiam ser nossos pais. E dívida especial temos para com quem é justo honrar como filhos e irmãos. Assim, a pessoa que não cumpre os deveres relativos aos irmãos, cai em falta por omissão. Nossa dívida é maior quando deixamos de fazer em favor dos outros homens aquilo a que nos obriga o Espírito de sabedoria.

Temos também obrigações para conosco mesmos e para com r o nosso corpo, de tal modo porém, que não enfraqueçamos a carne por prazeres desordenados.

Somos também devedores de cuidados para com a nossa alma, vigiando sobre a nossa inteligência; nossas palavras sejam isentas de termos que possam ferir e de inutilidades (cf Mt 12,36). Se não cumprimos os deveres, agravamos nossa dívida.

3 Sobretudo, por sermos obra e criatura de Deus, devemos conservar para com ele uma afeição especial; amá-lo “com todo o coração, com todas as forças, com toda a mente” (Dt 6,4-5; Mc 12,30).

Se não cumprimos isto com perfeição, ficamos como devedores diante de Deus e pecamos contra o Senhor. E nestas circunstâncias, quem rezará por nós? “Se um homem peca contra um outro homem, alguém orará por ele; mas, se peca contra o Senhor, quem orará por ele?” (1 Sm 2,25), diz Eli no primeiro livro de Samuel.

Somos devedores de Cristo, que nos remiu com o seu sangue, como todo escravo é devedor daquele que o resgatou e pagou por ele grande soma de dinheiro.

Temos também um débito para com o Espírito Santo, e o pagamos quando “não entristecemos aquele pelo qual fomos marcados em vista do dia da redenção” (Ef 4,30). Quando não o entristecemos, produzimos os frutos exigidos com sua ajuda ? e presença que vivifica a nossa alma.

Uma vez que não sabemos com clareza, quem é o anjo de cada um de nós, o qual contempla a face do Pai, no céu (cf. Mt 18,10), é bem claro que, se não lhe prestamos atenção, ficamos em dívida para com ele.

É verdade que somos “um espetáculo para o mundo, os anjos e os homens” (1 Cor 4,9). Sabemos ter cada pessoa no teatro o que dizer ou fazer diante dos espectadores. Se não agir assim, será castigada, porque desse modo terá insultado todo o teatro. Por isso, somos devedores para com todo o mundo, os anjos e os homens, de atos que aprenderíamos da sabedoria se tivéssemos boa vontade.

4 Além desses deveres de caráter geral, há também outras dívidas particulares, como as relativas às viúvas, das quais a Igreja tem a responsabilidade; outra, acerca dos diáconos; outra, para com os presbíteros; de gravidade maior é a dívida atinente ao bispo. O Salvador de toda a Igreja exige seu pagamento e, se não for saldada, será cobrada no juízo. Já o Apóstolo falou de um débito comum ao homem e à mulher, dizendo: “O marido dê à mulher aquilo que lhe deve, e a mulher ao marido”. E acrescenta: “Não vos negueis um ao ” outro” (1 Cor 7,3-5).

Para que falar de todas as dívidas que temos, se o leitor pode vê-lo neste escrito, com todas as suas consequências? Ou ficaremos onerados se não as pagamos, ou libertados se, ao contrário, pagamos. De qualquer modo porém, não passamos uma hora do dia ou da noite nesta vida, sem que tenhamos alguma dívida.

5 Quando somos devedores, ou pagamos ou negamos, pois nesta vida ambas as coisas são possíveis. Alguns há que não devem coisa alguma (cf. Rm 13,8). Alguns pagam quase todas as dívidas, menos alguma coisinha. Outros pagam um pouco, deixando quase tudo por pagar. Alguns nada pagam e ficam devendo tudo.

Não obstante, mesmo a pessoa que paga tudo, sem ficar devendo, precisa do perdão pelos débitos que teve anteriormente. Aquele que se esforça deveras a fim de pagar as dívidas que restavam, merece certamente o perdão. Mas os atos ilícitos impressos na alma continuam como um documento contra nós (cf. Cl 2,14). De acordo com isto seremos julgados, pois são documentos a exibir no momento de comparecermos ante o “tribunal de Cristo”, a fim de que cada um receba segundo o que fez de bem e de mal em sua vida (cf. I Rm 14,10).

Referem-se também a essa espécie de dívida as palavras dos Provérbios: “Não estejas entre os que se comprometem como fiadores de dívidas; do contrário, se não houver com que restituir, tomarão a cama debaixo de ti” (Pr 22, 26-27).

6 Se tantas dívidas temos com muita gente, também é certo que muita gente nos deve. Uns nos devem como a homens, outros, como a cidadãos, outros como a pais ou a filhos. Além disso, devem-nos como a esposos as esposas, e como a amigos os amigos.

Mas, quando algum de nossos devedores demorar a pagar o devido, o nosso comportamento será amável com eles, se não nos recordarmos dos seus erros e nos lembrarmos das nossas próprias dívidas, e da frequência com que temos atrasado o pagamento tanto aos homens como ao próprio Deus. Porque, se nos lembramos das dívidas que deixamos de pagar a tempo por não ter querido fazer tal ou tal coisa para o próximo, deveríamos ser mais amáveis com os que não nos pagaram seus débitos. Isto acontece especialmente, se levamos em conta as nossas ofensas a Deus, e mantemos uma linguagem altaneira (cf. Sl 72,8) por ignorância ou por causa de inquietação na ocorrência de fatos tristes.

7 Se não queremos ser benevolentes para com os nossos devedores, sofreremos a punição como a daquele que não perdoou a seu companheiro de serviço os cem denários que devia. Depois de obter o perdão da sua dívida, segundo a parábola do Evangelho, o patrão o manda prender e dele exige tudo o que lhe havia perdoado, dizendo-lhe: “Servo mau e negligente, não haverias tu de ter piedade do teu companheiro, do mesmo modo que eu tive contigo? Lancem-no na prisão até que restitua tudo quanto deve” (Mt 18,32-34).

E o Senhor acrescenta: “Do mesmo modo fará convosco o Pai celeste, se não perdoardes de coração a vossos irmãos” (id. 18,35). Portanto, é preciso que concedamos o perdão àqueles que dizem arrepender-se de ter pecado contra nós, ainda que o d nosso devedor faça isto muitas vezes. Está escrito: “Se teu irmão peca contra ti sete vezes, e sete vezes se volta para ti, dizendo: arrependo-me, hás de perdoá-lo” (Lc 17,4). Não sejamos duros com os que não se arrependem. São eles que se prejudicam a si mesmos, porque “quem deixa a correção se despreza a si mesmo” (Pr 15,32). Ainda assim, é preciso ter solicitude por eles. Mesmo se alguém está de tal modo pervertido que não tem consciência dos seus próprios males, preso de uma embriaguez mais perniciosa do que a do vinho, aquela que provém das trevas do mal (Pr 23, 29-35; Mt 24,49).

8 Aquilo que Lucas diz: “Perdoa-nos os nossos pecados” (Lc 11,4) (os nossos pecados provêm de que não pagamos as nossas dívidas), diz o mesmo Mateus, embora pareça restringir o perdão somente aos pecadores arrependidos. Lucas, com efeito, recorda a ordem do Salvador de acrescentarmos em nossa oração “porque nós também perdoamos a quem nos deve” (Lc 11,4).

Nós temos, de certo, o poder de absolver os pecados cometidos contra nós, como é manifesto na expressão: “Assim como nós perdoamos aos nossos devedores” (Mt 6,12), e ainda nesta outra: “Porque nós também perdoamos a quem nos deve” (Lc 11,4).

Aquele sobre quem Cristo soprou, como sobre os Apóstolos, e que se deixa conhecer pelos seus frutos, aquele que recebeu o Espírito Santo e se tornou espiritual, guiado pelo mesmo Espírito como filho de Deus, este julga espiritualmente (1 Cor 2,14-15; Rm 8,14; Gl 5,18).

Alguém assim perdoa como Deus perdoa, e retém os pecados incuráveis como os profetas, não falando com suas próprias palavras, mas com as que Deus quer (cf. Jo 20, 23). Assim também serve a Deus, o único que pode perdoar pecados.

9 No Evangelho de S. João, são estas as palavras relativas ao poder dado aos Apóstolos de perdoar: “Recebei o Espírito Santo. A quem perdoardes os pecados, serão perdoados; a quem os retiverdes, serão retidos” (Jo 20, 22-23). Se alguém toma esta palavra sem atento exame, poderá censurar os Apóstolos por não terem absolvido os pecados a todos, porque a todos foram os pecados perdoados da parte de Deus, mas de terem retido os pecados de alguém de tal sorte que foram retidos da parte de Deus.

Para entender a remissão dos pecados, dada por Deus aos homens pelo ministério de homens, parece útil tomar um exemplo da Lei.

Aos sacerdotes da Lei é proibido oferecer um sacrifício por certos pecados, pois são absolvidas as culpas pelas quais se oferece um sacrifício.

O sacerdote, que tem o poder de oferecer um sacrifício por certos pecados, como os de culpa involuntária, não pode jamais oferecer um holocausto ou um sacrifício de expiação (cf. Sl 39,7) pelo adultério, pelo assassínio voluntário ou por outros pecados muito graves.

Isto vale também para os Apóstolos e para os seus semelhantes, porque são sacerdotes segundo o exemplar do sumo Sacerdote. Estes, no serviço divino, instruídos pelo Espírito de Deus, sabem por quais pecados se oferece o sacrifício, e também o tempo e o modo, e sabem igualmente por quais pecados não podem oferecer o sacrifício.

Assim, o pontífice Eli, conhecendo os pecados dos seus filhos Ofni e Fineias, e não podendo ajudá-los na remissão dos seus pecados, confessa ter perdido a esperança de poder fazê-lo: “Se um homem peca contra um outro homem, alguém orará por ele; mas, se peca contra o Senhor, quem orará por ele?” (1 Sm 2, 25).

10 Alguns, não sei como, se arrogam um poder que supera o poder sacerdotal — talvez nem tenham a respectiva ciência — e se gabam de poder absolver os pecados de idolatria, de adultério e de fornicação, como se, por meio da oração que eles formulam sobre os réus desses crimes, se pudesse apagar o pecado que “conduz à morte”.

Não leram esta palavra da Escritura: “Há um pecado que conduz à morte; não digo que se ore por ele” (1 Jo 5,16). Não se pode passar em silêncio o valente , que oferece por seus filhos um sacrifício com estas palavras.” “Talvez os meus filhos, no seu coração, terão pensado mal de Deus” ( 1,5). Ele oferece um sacrifício por eventuais pecados internos, que ainda não tinham aflorado aos lábios.