Orígenes Pão Nosso III

Orígenes — Tratado da Oração

XXVII O NOSSO PÃO DE CADA DIA DÁ-NOS HOJE (cont.)

14 Precisamos agora examinar se temos de entender como ciclos de séculos as palavras escritas sobre as festas e as assembleias religiosas que se realizam conforme os dias, os meses, os tempos e os anos.

Pois se “a Lei é sombra dos bens futuros” (Hb 10,1), necessariamente os múltiplos sábados serão a sombra de dias numerosos e os novilúnios devem reaparecer em certos intervalos de tempo, de acordo com não sei qual conjunção da lua com o sol.

E se o primeiro mês e os dias entre 10 e 14, e a festa dos ázimos desde o dia 14 e o 21 (cf. Ex 12,2.3.6.15.18) são uma “sombra do mundo vindouro” , quem é suficientemente sábio (cf. Os 14,10) e tão amigo de Deus, que possa distinguir o primeiro de muitos meses e o décimo dia, etc? Que devo dizer da festa das sete semanas e do sétimo mês cujo novilúnio se anuncia com trombetas, e cujo décimo dia é o da expiação? (cf. Lv 16,29; 23,24 . 27-28).

Deus só conhece essas coisas e, por isso, deu suas leis? Quem conhece com profundeza a mente de Cristo, a ponto de compreender o sentido do ano sabático em que os servos hebreus obtinham a liberdade, e eram perdoadas as dívidas e a terra santa ficava sem cultivo? (cf. Ex 23,10-11; Lv 25,4-7; Dt 15,1-3).

Há uma festa ainda mais importante que a do ano sabático. É a do chamado jubileu. Mas ninguém consegue ter ideia clara de quão grande seja essa festa, e da sua realidade segundo o cumprimento das leis. Só o entendem os que tiverem contemplado o plano do Pai, dispondo todas as idades conforme os seus inescrutáveis desígnios e inacessíveis caminhos (cf. Rm 11,33).

15 Comparando dois textos do Apóstolo, fiquei perplexo e cheio de dúvida, perguntando-me como pode ser esta a “plenitude dos tempos” em que Jesus “apareceu de uma vez para sempre, a fim de destruir o pecado”, se a este tempo hão de suceder outros séculos.

Eis como soam os textos do Apóstolo. O primeiro é da Carta aos Hebreus: “Manifestou-se agora de uma só vez na plenitude dos tempos para a destruição do pecado, mediante o sacrifício de si mesmo” (Hb 9,26). Na Carta aos Efésios ele diz: “A fim de mostrar aos séculos vindouros a superabundante riqueza da sua graça, por sua bondade para conosco” (Ef 2,7). Permitindo-me discorrer sobre este labirinto, penso deste modo: como a plenitude do ano é o último mês e depois começa o novo mês, assim talvez a plenitude dos séculos, como se fosse um ano de séculos, entra num outro período, o seguinte a muitos. E nestes séculos futuros Deus manifestará a riqueza da sua graça em sua benignidade.

Agora, portanto, o maior pecador, aquele que blasfemou contra o Espírito Santo, será possuído pelo pecado em todo o século presente, ao passo que, depois, desde o princípio ou no fim do século vindouro, não sei como ele será tratado, relativamente à graça da remissão.9

16 Aquele que refletiu sobre estas coisas e concebeu em sua mente a semana de séculos para contemplar o santo Sábado, e o mês de séculos para ver o santo Novilúnio de Deus, e o ano dos séculos para considerar as festas do ano, quando “todo indivíduo de sexo masculino deve comparecer diante do Senhor Deus” (Dt 16,16), e os anos que correspondem aos séculos para compreender o sétimo ano santo e o ano jubilar dos séculos, em que se louva Aquele que promulgou tão preciosa lei, a tal pessoa se pergunta o seguinte: como pode, com £ efeito, tal pessoa pensar que a mínima porção de uma hora em um dia de épocas tão grandes, pode ter pouca importância? Como vai ela deixar de fazer tudo que pode, a fim de que, depois da preparação neste mundo, mereça alcançar “o nosso pão substancial” no tempo chamado “Hoje”, e o receber cada dia?

Depois desta exposição, já se compreende o que significam as palavras “cada dia”.

Como Deus vive por toda a eternidade, aquele que pede a Deus não só “hoje”, mas “cada dia” , chegará a alcançá-lo “daquele que tem poder para realizar todas as coisas, de modo incomparavelmente melhor do que podemos pedir e pensar” (Ef 3,20). Se me permitem falar hiperbolicamente, direi que alcançará ainda mais do que “olho viu”, mais do que o “ouvido escutou”, mais do que aquilo que chegou ao “coração do homem” (1 Cor 2,9).

17 Tudo isso me pareceu necessário para compreender as palavras “hoje” e “cada dia” , quando oramos ao Pai que nos dê o pão substancial.

Referindo-nos, porém, ao último Evangelho (Lucas) e ao termo “nosso”, já examinado, devemos tomar consciência de como esse pão é nosso, porque ali não se diz: “Dá-nos hoje o nosso pão substancial”, mas, sim, “dá-nos cada dia o nosso pão necessário”(substancial). Surge a questão de como esse pão pode ser nosso, visto que o Apóstolo nos ensina que “seja a vida, seja a morte, seja o presente, seja o futuro” (1 Cor 3,22), tudo pertence aos santos. Mas não é necessário por agora alongar-nos sobre esse assunto.