XXVII O NOSSO PÃO DE CADA DIA DÁ-NOS HOJE (cont.)
11 Como estamos examinando o que significa o “pão substancial”, a “árvore da vida”, a “sabedoria de Deus” e o “alimento comum aos santos e aos anjos”, não é fora de propósito refletir sobre aquilo que é narrado no Gênesis, isto é, os três homens que foram recebidos por Abraão e que se alimentaram de três medidas de flor de farinha amassadas para ser cozidas sobre brasas (cf Gn 18, 2-6).
Talvez essas coisas tenham sido escritas em sentido figurado. Pois os santos podem, às vezes, partilhar o alimento espiritual e racional não só com homens, mas também com os poderes divinos, para sua própria utilidade ou para mostrar que lhes foi dado o poder de adquirir tão grande alimento. Alegram-se os anjos e se alimentam com essa manifestação. Dispõem-se a cooperar e a prestar ajuda por todos os meios, e a inspirar doutrinas mais elevadas daquele que os alegra e por assim dizer os alimenta, com conhecimentos melhores e mais sublimes do que os anteriores, que eles haviam preparado como alimento.
Nada há de estranho que o homem alimente os anjos, quando o próprio Cristo diz que “está à porta e chama” (Ap 3,20), até que entre onde lhe abrem a porta e coma o que estiver servido. Depois, conforme o seu poder de Filho de Deus, repartirá os seus próprios alimentos com aqueles que o tiverem recebido.
12 Aquele que participa do pão substancial fortalece o seu coração e se torna filho de Deus. Mas o que come com o dragão não passa de um “etíope” espiritual, transformado em serpente pelos “laços do dragão” (Sl 73, 13-14) e, mesmo que mostre o desejo de se batizar, é desaprovado pelo Filho de Deus e ouve estas palavras: “Serpentes, raça de víboras! quem vos ensinou a fugir da ira iminente?” (Mt 3,7; Lc 3,7). Davi, a propósito da serpente comida pelos etíopes, disse: “Fendeste a cabeça da serpente das águas e quebraste o crânio do dragão, e o deste em alimento aos povos etíopes” (Sl 73,13-14).
Considerando, com efeito, que o Filho de Deus subsiste substancialmente, e que o mesmo acontece ao seu adversário, não é absurdo que ambos possam ser alimento para o grupo correspondente de pessoas. Por que duvidaremos em aceitar que todos os poderes bons e maus e igualmente os homens possam alimentar-se dessas coisas?
Pedro, quando estava prestes a falar com o centurião Cornélio e com a comunidade reunida em Cesareia, para comunicar a palavra de Deus aos pagãos, viu descer do céu uma toalha suspensa pelas quatro pontas, na qual havia toda sorte de quadrúpedes, répteis e animais selvagens da terra. E quando recebeu ordem de se levantar e matar e comer, recusou-se, dizendo: “Tu sabes que jamais nada de impuro entrou na minha boca” (At 10,1 ss.).
E foi-lhe ordenado que não qualificasse nenhum animal como imundo e impuro, porque tudo que fora purificado não devia Pedro tratar de impuro. Assim reza o texto: “O que Deus purificou, não deves chamar de impuro”( At 10,15).
Assim, os alimentos puros e impuros que, de acordo com a Lei, se distinguem segundo os nomes de diversos animais, se referem aos costumes diversos dos seres racionais. A lei ensina pois, que há alimentos bons para nós, mas não todos, até que Deus os purifique, tornando-os puros (cf. Mt 13,47).
13 Sendo assim, e havendo tal diferença de alimentos, há um que sobressai entre todos: o pão substancial de cada dia. Temos de orar para ser dignos dele e para que, alimentados pelo Verbo que estava em Deus desde o princípio (cf. Jo 1,1), nos divinizemos.
Mas diriam alguns que “epioúsion” é derivado de “epiénai” que significa “sobrevir”, “suceder”. Isto levaria a dizer que se nos manda pedir o pão próprio do século futuro, para que Deus no-lo conceda por antecipação e nos dê já hoje o que nos será dado amanhã. “Hoje” seria o mundo atual, “amanhã”, o futuro.
Mas, como em minha opinião, é melhor o primeiro significado, vamos examinar o conceito de “sémeron” (hoje), termo acrescentado por Mateus, ou a expressão “kath’eméran” (cada dia), que se acha escrita em Lucas.
Em muitos lugares da Sagrada Escritura, é costume indicar pelo termo “hoje” (sémeron) a perpetuidade. Exemplo disso é a passagem: “Ele é pai dos Moabitas até hoje”, e “este é o progenitor dos Amonitas até hoje” (Gn 19,37-38). Veja-se também: “E correu esse rumor entre os judeus até hoje” (Mt 28,15).
Leia-se igualmente nos Salmos: “Oxalá ouvísseis hoje a sua voz, não endureçais os vossos corações” (Sl 94,7). Exemplo muito claro se acha no livro de Josué: “Se deixais hoje de seguir o Senhor, é que vos estais rebelando contra ele hoje” (Js 22,18).
Se “hoje” equivale a dizer o presente, talvez aconteça que “ontem” signifique o passado. Sustento a hipótese de que é assim que se deve entender nos Salmos e na Carta de Paulo aos Hebreus.
Diz-se nos Salmos: “Mil anos são a teus olhos como um dia, o f dia de ontem que passou” (Sl 89,4). Talvez seja este o célebre milênio, idêntico ao “ontem” e distinto do “hoje” . Na Carta do Apóstolo se lê: “Ontem como hoje, Jesus Cristo é o mesmo e será sempre” (Hb 13,8). Nada há de estranho que Deus veja todas as épocas como um só dia, e ainda menos, a meu ver.