Orígenes Pão Nosso I

Orígenes — Tratado da Oração

XXVII O NOSSO PÃO DE CADA DIA DÁ-NOS HOJE (cont.)

6 Mas parece que Salomão ensina o mesmo nos Provérbios: Aquele que por seus curtos conhecimentos não pode entender os mais elevados e vigorosos ensinamentos, mas se mantém fiel em suas convicções, é melhor do que outro inteligente e arguto, apto para captar estes assuntos com maior propriedade, mas que não vê claramente o valor da paz e da concórdia universal.

Eis o texto: “É melhor um prato de legumes com amor, do que um boi cevado, com ódio” (Pr 15,17). Muitas vezes, uma comida ordinária e simples dada de bom grado, quando nos convidam os que não podem oferecer outra coisa, nós a preferimos a explicações sublimes e altissonantes contra o conhecimento de Deus (cf. 2 Cor 10,5).

Sim, preferimos isso àqueles que com muito calor oratório anunciam uma doutrina diferente sobre o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que nos deu a Lei e os Profetas (cf. Mt 22,40). Para que nossa alma não adoeça por carência de alimento e nós não morramos relativamente a Deus por fome de sua Palavra, obedientes ao ensino do nosso Redentor, pecamos ao Pai o pão vivo, que é o mesmo que o pão substancial de cada dia, enquanto cremos e vivemos mais dignamente.

7 É o momento de examinar o significado da palavra “substancial” . Antes de tudo, é preciso saber que o termo “epioúsion” não se encontra em nenhum dos escritos gregos e dos sábios, que não é de uso corrente e parece cunhado pelos evangelistas (cf Mt 6,11; Lc 11,3).

Mateus e Lucas estão de acordo quanto ao uso dessa palavra. Sobre isso não há divergência entre os dois. Fizeram o mesmo para outras palavras os tradutores dos textos hebraicos.

Qual o grego que alguma vez usou as formas “pôr nos ouvi- ò dos” ou “dar a ouvir” ( enotídzou e akoutístheti ), em vez de “escutar” (eis tá ôta dexai) ou “ouvir” ( akousai poiéi)? Um vocábulo análogo a “epioúsios” em Moisés é posto na boca de Deus: “Vós sois para mim um povo ‘perioúsios’ ” (cf. Ex 19,6). Os dois adjetivos parecem-me derivar de “ousía” (substância, ser, peculiaridade, propriedade): o primeiro significa o pão transformado em nossa substância, o segundo indica o povo, que se tornou propriedade de Deus e que comunga com ele.

8 A substância (ousía) no sentido próprio daqueles que afirmam a subsistência fundamental dos seres incorpóreos é aplicada ao “ser” em seu significado estrito, imaterial, essencial, que não admite nem mais nem menos, nem sofre perda alguma.8 Crescer e diminuir é propriedade dos corpos sujeitos a crescimento ou diminuição, porque são corruptíveis e precisam de algo que lhes sirva de apoio e nutrição. Crescem quando há mais entradas do que saídas, diminuem quando há mais saídas do que entradas. Pode acontecer que estes não recebam mais nada do exterior e então, se acham no estado, por assim dizer, de puro decréscimo.

Os que pensam que o “ser” se refere, antes de tudo, ao material e, secundariamente, ao incorpóreo, dão as seguintes definições: substância (ousía) e a matéria prima (hyle), da qual todas as coisas são, a matéria dos corpos, de que são os corpos; ou o substrato das coisas denominadas, do qual tais coisas são denominadas; ou o primeiro elemento subsistente indeterminado; ou o elemento preexistente dos seres. Ou então, aquilo que recebe todas as transformações e todas as mudanças, sendo no entanto imutável conforme o próprio conceito, subjacente a toda mudança e transformação.

Segundo estes filósofos, a substância (ousía) é indeterminada e informe, por definição. Ela é como que a quantidade, o lugar onde todas as qualidades se assentam. Forma, nesse relacionamento, seria cada atividade em geral, a que pertencem também o movimento e as circunstâncias. Eles dizem que o ser, por definição, não participa de nenhuma dessas formas, mas que é inseparável delas, enquanto potência ou capacidade de receber qualquer energia ou ato causado pela forma ou alteração.

A substância, de fato, tem presente uma força que a tudo per-vade para ser causa das qualidades e circunstâncias que se efetuam em torno de si.

Dizem eles também que o ser, a substância, é mutável em tudo e que, sendo divisível, pode unir-se a outra substância, numa unidade.

9 Neste exame em que procuramos o significado de substância (ousía), em referência ao pão substancial (epioúsios) e ao povo peculiar (perioúsios), explicamos os seus vários sentidos. Em primeiro lugar, mostramos que o pão, que devemos pedir, era o pão espiritual. Necessariamente, pois, se deve entender que substância e pão são idênticos.

Como, pois, o pão corporal dado ao corpo daquele que o come passa para a sua substância, assim o “Pão vivo descido do céu” , dado ao espírito e à alma, comunica a sua própria força àquele que procura nutrir-se dele. Este será o pão substancial, objeto do nosso pedido.

A pessoa que se alimenta se robustece de modos diversos, conforme for a qualidade do alimento: sólido, próprio aos atletas, ou leite e vegetais.

Isto sucede com a palavra de Deus. Ela é dada como leite a meninos ou legumes aos fracos, mas aos lutadores ela é carne. Cada qual se nutre na medida em que se dispõe a receber o poder da palavra, podendo, em grau distinto, fazer coisas diferentes e vindo a constituir uma classe diferente de pessoas. Existem, naturalmente, alimentos nocivos ou deletérios, e até mesmo alimentos que não podemos comer. Tudo isto se aplica, por analogia, à diversidade de força nutritiva dos ensinamentos.

O pão substancial, adequado à natureza racional ou à substância, traz à alma saúde, bem-estar, força, e comunica a quem o come a sua imortalidade, porque o Verbo de Deus é imortal.

10 Este pão substancial me parece indicado na Sagrada Escritura com um outro nome, com o nome de “árvore da vida” para a qual aquele que “estender a mão, e tomar dela viverá para sempre” (Gn 3,22).

Sob um terceiro nome, Salomão chama esta árvore de “Sabedoria de Deus”, quando diz: “Ela é árvore da vida para os que a ela são assíduos, e segura, para os que nela se apoiam como no Senhor” (Pr 3,18).

Sendo que mesmo os anjos se nutrem da sabedoria de Deus, e da contemplação da verdade conjunta à sabedoria, ganham forças para cumprir as suas obras próprias, diz-se nos Salmos que até os anjos se alimentam e que os homens de Deus, chamados “hebreus”, comungam com os anjos e são, por assim dizer, seus comensais.

É o significado daquelas palavras: “O homem comeu o pão dos anjos” (Sl 77,25).

Certamente não somos tão curtos de inteligência para pensar que os anjos se alimentam comendo sempre de um pão material como aquele que, segundo se conta, desceu do céu para os hebreus que haviam saído do Egito, e que os hebreus comungaram com os anjos, espíritos a serviço de Deus.