Orígenes Pão Nosso

Orígenes — Tratado da Oração

XXVII O NOSSO PÃO DE CADA DIA DÁ-NOS HOJE

1 O nosso pão “diário”.

Na versão de Lucas, “dá-nos cada dia o pão necessário”. Como alguns estimam que esta petição se refere ao pão para o corpo, é justo que refutado o seu erro, se proponha o verdadeiro significado do pão diário.

A eles se poderá objetar: Aquele que nos diz que pecamos bens grandes e celestes, como pode mandar-nos pedir pão para o corpo, o qual não é nem grande nem celeste? Como poderia esquecer tudo que nos ensinou, e ordenar que elevemos ao Pai orações por algo de terreno e de pouca importância?

2 O verdadeiro pão.

Seguindo o próprio Mestre, vamos expor com maior amplitude o que ele nos ensina a respeito do pão. No Evangelho de João, diz aos que foram a Cafarnaum procurá-lo: “Em verdade, em verdade vos digo: vós me procurais, não porque vistes sinais, mas porque comestes dos pães e vos saciastes” (Jo 6,26).

Os que comeram dos pães que Jesus abençoou, e com eles se fartaram, procuram compreender melhor o Filho de Deus e correm para ele. Por isso, mandou ele: “Procurai não o alimento que perece, mas o alimento que permanece para a vida eterna, e que o Filho do Homem vos dará” (Jo 6,27). Aos que ouviram isto e interrogaram, dizendo: “Que faremos para realizar a obra de Deus?”, Jesus responde: “Esta é a obra de Deus, que creiais naquele que ele enviou” (Jo 6,28-29). Deus, de fato, “enviou-lhes o seu Verbo e os curou” (Sl 106,20), como está escrito nos salmos. Ele curou os que estavam enfermos. Os que acreditam nesse Verbo, fazem a obra de Deus, que é “alimento que permanece para a vida eterna” (Jo 6,27).

E ainda: “Meu Pai vos dá o verdadeiro pão do céu. E o pão de Deus é aquele que desceu do céu e dá a vida ao mundo” (Jo 6, 32-33).

O pão verdadeiro é o que alimenta o homem verdadeiro, isto é, aquele que foi feito à imagem de Deus. Quem dele se nutre, torna-se também semelhante ao Criador. O que é, com efeito, mais apto a nutrir a alma do que o Verbo? O que é mais precioso do que a Sabedoria de Deus para a alma de quem a pode receber em si mesmo? Ou que coisa é mais conatural à criatura racional do que a Verdade?

3 Se alguém objeta a isto, dizendo que o Cristo não nos teria ensinado a pedir o “pão de cada dia” como se fosse diferente dele mesmo, ponha atenção no fato de que ele, no Evangelho segundo João, fala ora de um pão diverso dele, ora como se ele mesmo fosse o pão.

Exemplo do primeiro caso é o seguinte: “Moisés não lhes deu o pão do céu; meu Pai vos dá o verdadeiro pão do céu” (Jo 6,32).

Exemplo de que estava identificando o pão consigo mesmo, é a resposta dada aos que lhe disseram: “Dá-nos sempre desse pão”. Disse-lhes Jesus: “Eu sou o pão da vida. Aquele que vier a mim não terá fome, e aquele que crer em mim não terá nunca sede” (Jo 6,34-35).

Um pouco mais adiante, ele diz: “Eu sou o Pão vivo descido do céu. Se alguém come deste pão, viverá eternamente. E o pão que eu darei é a minha carne para a vida do mundo” (Jo 6,51).

4 Na linguagem da Escritura, todo alimento é chamado de pão, como aparece claramente nos escritos de Moisés. “Durante quarenta dias, não comi pão nem bebi água” (Dt 9,9). A Palavra que nutre é variada e diversa, pois nem todos podem alimentar-se com a solidez dos ensinamentos divinos. Por isso, quando Cristo quer oferecer alimento de atletas, próprio para os mais perfeitos, diz: “O pão que eu darei é a minha carne para a vida do mundo” (Jo 6,51). E um pouco mais adiante: “Se não comerdes da carne do Filho do Homem e não beberdes o seu sangue, não tereis a vida em vós. Quem come a minha carne e bebe o meu sangue, tem a vida eterna, e eu o ressuscitarei no último dia. Porque minha carne é verdadeiro alimento e o meu sangue é verdadeira bebida. Quem come a minha carne e bebe o meu sangue, permanece em mim e eu nele. Como o Pai que vive, me enviou e eu vivo pelo Pai, assim quem me come viverá por mim” (Jo 6,53-57).

Este é o alimento vivo, a carne de Cristo, que sendo o Verbo, se fez carne, segundo a palavra: “E o Verbo se fez carne” (Jo 1,14).

Quando o comemos, ele “habitou entre nós”. E quando ele é repartido, cumpre-se a palavra: “Vimos a sua glória” (Jo 1,14). E ainda esta: “Este é o pão descido do céu. Não como o maná que os pais comeram e morreram; agora aquele que come este pão viverá para sempre” (Jo 6,58).

5 Paulo, falando aos Coríntios que, ainda crianças, se comportavam de modo vulgar, dizia: “Eu vos alimentei com leite e não com alimento sólido, pois ainda não o podíeis suportar. Mas nem o suportais agora, porque ainda sois carnais” (1 Cor 3,2-3).

E na Carta aos Hebreus: “Tendes necessidade de leite, em lugar de comida sólida. Pois todo aquele que se nutre de leite, desconhece a doutrina da justiça, porque é criança. Ao contrário, a comida sólida é dos perfeitos, daqueles que por hábito exercitaram os sentidos a discernir o bem e o mal” (Hb 5, 12-14).

Mesmo aquela expressão de Paulo: “Um acredita poder comer de tudo, enquanto o fraco e imperfeito come apenas legumes” (Rm 14,2), penso que ele a refere não aos alimentos corporais, mas às palavras de Deus, que alimentam a alma. O mais fiel e mais perfeito pode comer de tudo, como se deduz das palavras: “Um acredita poder comer de tudo”, enquanto aos fracos e imperfeitos bastam ensinamentos mais simples e não de particular peso, como diz Paulo: “O fraco e imperfeito come apenas legumes”.

SEGUE: I; II; III