Orígenes Pai Nosso que estais no céu

Orígenes — Tratado da Oração

XXII Pai nosso, que estás no céu

1 “Pai nosso, que estás no céu”. Convém indagar se no Antigo Testamento se encontra uma oração de alguém que chame a Deus com o nome de Pai. Até agora, por mais que o investigássemos, nada encontramos.

Não quero dizer que Deus não é chamado de Pai e que não sejam chamados filhos de Deus aqueles que nele creem. Mas em parte alguma encontramos na oração do Antigo Testamento a ousada confiança anunciada pelo Salvador ao chamar Pai a Deus.

Que Deus seja chamado Pai e sejam chamados filhos aqueles que seguem a palavra de Deus, isto se pode ver em muitas passagens, como por exemplo, no Deuteronômio: “Abandonaste o Deus que te gerou, e esqueceste o Deus que te nutriu” (Dt 32,18).

E também: “Não é ele, acaso, o Pai que te possuiu, e te fez, e te criou?” (id. 32,6). E ainda: “Filhos que não têm fé no que são” (id. 32,20).

No profeta Isaías lemos: “Eu gerei filhos e os criei, e eles me desprezaram” (Is 1,2). Igualmente, em Malaquias: “O filho honrará seu pai e o servo a seu senhor. Mas se eu sou Pai, onde está a minha honra? E se sou Senhor, onde está o meu respeito”? (Ml 1,6).

2 Se é certo que a Deus chamam de Pai, e chamam de filhos os que são gerados pela palavra da fé em Deus, não aparece porém, no Antigo Testamento, a asserção firme e estável dessa filiação.

As passagens citadas mostram, com efeito, que os chamados de filhos são súditos culpados. De fato, como diz o Apóstolo: “Durante o tempo em que o herdeiro é menor, não difere em nada de um servo, apesar de ser dono de tudo, pois está sob tutores e administradores até ao dia estabelecido pelo pai” (Gl 4,1.2)

Esta plenitude dos tempos chegou com o advento de nosso Senhor Jesus Cristo, quando recebem a filiação adotiva os que o querem, segundo ensina Paulo com estas palavras: “Não recebestes o espírito de servidão, para ser de novo sob o temor, mas recebestes o espírito de adoção, pelo qual podemos gritar: Abba, Pai!” (Rm 8,15).

Também no Evangelho de João se diz: “A quantos o receberam, deu-lhes o poder de tomar-se filhos de Deus os que creem no seu nome” (Jo 1,12) Em virtude desse espírito de filhos adotivos, aprendemos na epístola católica de João, a respeito dos filhos de Deus: “Todo aquele que é gerado por Deus não comete pecado, porque o seu germe permanece nele e não pode pecar, por ser gerado por Deus” (1 Jo 3,9).

3 Portanto, se entendêssemos aquilo que está escrito em Lucas: “Quando orardes, dizei: Pai” (Lc 11,2), não nos atreveríamos a dar-lhe este título, se não fôssemos genuínos filhos, acrescentando a nossos pecados anteriores o de impiedade. Explico melhor o que digo. Diz Paulo na primeira Carta aos Coríntios: “Ninguém pode dizer Senhor Jesus, senão no Espírito Santo, e ninguém que fala no Espírito Santo, diz: Anátema a Jesus” (1 Cor 12,3).

Ele chama a mesma pessoa de “Espírito Santo” e “Espírito de Deus”. Mas não é de todo claro o que significa dizer “Senhor Jesus” no Espírito Santo, porque milhares de hipócritas e de hereges e até mesmo os demônios usam tal expressão, quando se sentem vencidos pela força desse nome. Ninguém poderá asseverar que todos esses disseram: “Senhor Jesus” no Espírito Santo. Não parece sequer que esses tais digam: “Senhor Jesus”, porque os únicos que dizem isto de coração, servem ao Verbo de Deus. Em tudo que fazem, proclamam que não reconhecem outro Senhor senão a Ele. Se estes últimos são os que dizem: “Senhor Jesus”, todo aquele que peca maldiz por seus atos ao Verbo Divino, e grita por suas ações: “Anátema a Jesus”!

Portanto, como alguns dizem: “Senhor Jesus” e alguns de disposição contrária dizem: “Anátema a Jesus”, assim também os que nasceram de Deus não fazem mais o pecado (cf. 1 Jo 3,9), participam da semente divina e, afastando-se de todo pecado, dizem por suas ações: “Pai nosso, que estás no céu”. O próprio Espírito Santo testemunha ao espírito deles que são filhos de Deus e seus herdeiros, co-herdeiros do Cristo, pois que, sofrendo com ele, têm razão de esperar a glorificação com ele (cf. Rm 8,17).

E eles, para não dizerem apenas pela metade: “Pai nosso”, põem o seu coração naquilo que fazem, e o coração, que é a fonte e o princípio das boas obras, “crê para a justiça”, enquanto em consonância com ele a “boca confessa a salvação” (Rm 10,10).

4 Desse modo, todas as suas obras, palavras e pensamentos, transformados pelo Verbo Unigênito e à sua semelhança, reproduzem a imagem do Deus invisível e conduzem à imagem do Criador que “faz nascer o seu sol sobre os maus e os bons e faz chover sobre os justos e os injustos” (Mt 5,45), de modo que neles se reproduza “a imagem do (Verbo) celeste” (1 Cor 15,49), o qual é a “imagem de Deus” (Cl 1,15).

Os santos são pois, imagens da imagem, que é o Filho, e exprimem a filiação, configurados não só ao corpo glorioso do Cristo (cf. Fl 3,21), mas também àquele que está no corpo. Eles se configuram com quem já é corpo glorioso, quando se “transformam pela renovação do espírito” (Rm 12,2). Se, pois, sendo eles perfeitamente assim, dizem “Pai nosso, que estás no céu”, é claro que aquele “que comete o pecado”(como diz João na sua primeira Carta), “vem do Diabo, porque desde o início o Diabo é pecador” (1 Jo 3,8).

E como a semente de Deus, permanecendo naquele que nasceu de Deus, o impede de pecar porque se tornou conforme ao Verbo Unigênito, assim também em todos os que fazem o pecado permanece a semente do Diabo. Isto porque ela, enquanto estiver na alma, não permite que esta faça nada de reto. Mas porque “o Filho de Deus apareceu para destruir as obras do Diabo” (1 Jo 3, 8), pode acontecer que, habitando em nossa alma o Verbo de Deus, se destruam em nós as obras do Diabo e a semente do mal lançada em nós, e também que nos tornemos filhos de Deus.

5 Não pensemos pois, que aprendemos a dizer as palavras do “Pai nosso” apenas no tempo da oração. Pois, se bem se entende o que acima dissemos sobre a passagem onde é dito “é preciso orar sem cessar” (1 Ts 5,17), façamos que toda a nossa vida seja uma oração incessante na qual dizemos: “Pai nosso, que estás no céu”, e vivamos não sobre a terra, mas no céu (cf. Fl 3,20), que é trono de Deus, porque o Reino de Deus foi estabelecido em todos os que trazem “a imagem do homem celeste” (1 Cor 15,49) e, por isso, se tornaram celestes.