Origenes Oratio Destinatarios

Orígenes — Da Oração — Apresentação aos destinatários
II Apresentação aos destinatários
1 É razoável a ti, Ambrósio, varão temente a Deus e trabalhador infatigável, e a ti também, Tatiana, adornada de virtudes (arete) e de coragem, (e com a qual me regozijo de já ter sido liberta, como outrora Sara, de certos incômodos femininos), é razoável, repito, que vos pergunteis a vós mesmos por que eu, pretendendo tratar da Oração, comecei falando de coisas impossíveis aos homens, mas possíveis pela graça (kharis) de Deus.

Uma das coisas impossíveis, segundo me parece, tendo em vista a nossa fraqueza, é precisamente falar, de modo claro, justo e digno da oração, como convém orar, o que dizer a Deus na oração, e quais os tempos favoráveis à oração (…) Aquele que, por causa da magnitude das suas revelações, temia que alguém o julgasse superior ao que via e escutava (a respeito dele), confessava não saber orar como convém (cf. 2 Cor 12, 6-7), dizendo: “Não sabemos o que orar como convém” (Rm 8,26).

Necessário é, pois, não só orar, mas também orar como convém, e pedir o que convém. Na verdade, embora possamos compreender o que convém orar, isto seria insuficiente se não ajuntássemos como convém pedir. Mas de que serviria saber como convém, se não soubéssemos pedir aquilo que convém?

2 Uma destas duas exigências, isto é, o que pedir, são as próprias palavras da oração.

Quanto à outra, isto é, como convém orar, é a condição do próprio orante. Eis, por exemplo, o que convém pedir: “pedi coisas grandes, e as pequenas vos serão acrescentadas” (NT: Trata-se de um “ágraphon”, isto é, uma palavra de Cristo, recebida da Tradição, não escrita, e que Orígenes muito estima.) “Pedi as coisas celestes e as terrenas vos serão acrescentadas” (cf. Mt 6,33); e ainda, “orai pelos que vos caluniam” (Mt 5,44); e também: “pedi ao Senhor da messe que mande operários para a sua messe” (Mt 9,38); e de novo: “orai para não cairdes em tentação” (Lc 22,40); ou esta: “orai para que a vossa ruga não aconteça no inverno ou num sábado” (Mt 24,20); e ainda: “orando, não multipliqueis as palavras” (Mt 6,7), e outras coisas parecidas.

Sobre o modo de orar, ouçamos o Apóstolo: “Quero que os homens orem em todo lugar, elevando as mãos puras, sem ira nem discussão. Igualmente, as mulheres, que elas tenham roupas decentes, se enfeitem com pudor e modéstia, sem trancas nem objetos de ouro, pérolas ou vestuário suntuoso, mas que se ornem, antes, com boas obras, como convém a mulheres que se professam piedosas” (1 TM 2, 8-10). Orar do modo que convém, nos é ensinado também por esta palavra: “Portanto, se estiveres para trazer a tua oferta ao altar, e ali te lembrares que o teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa a tua oferta diante do altar, e vai primeiro reconciliar-te com teu irmão, e depois virás apresentar a tua oferta” (Mt 5,23).

Qual, com efeito, é o dom da criatura racional que pode ser mais agradável a Deus, do que a palavra suave da oração, que parta duma consciência isenta da pestilência do pecado? Ao modo de orar aplica-se também esta palavra: “Não vos recuseis um ao outro, a não ser de comum acordo e por algum tempo, para que vos entregueis à oração; depois disso, voltai a unir-vos, a fim de que Satanás não vos tente por causa da vossa incontinência” (1 Cor 7,5).

Tais coisas impedem o modo conveniente de orar, a não ser que o ato próprio do mistério conjugal (do qual convém precipuamente calar) se faça com decoro, mais rara e desapaixonadamente.

O consenso, de que aí se fala, faz desvanecer a perturbação das paixões (pathos), suprime a incontinência e impede a insolência de Satanás (diabolos).

Além disto, também nos ensina como devemos orar, a seguinte palavra: “Quando vos levantais para orar, perdoai, se tendes alguma coisa contra alguém” (Mc 11,25). Acrescentemos ainda o que diz Paulo: “Todo homem orando ou profetizando com a cabeça coberta, desonra a sua cabeça” (1 Cor 11, 4-5). Isto se refere ao modo conveniente de orar.

3 Mas Paulo sabia tudo isso. Teria podido atingir muitas coisas mais da Lei, dos Profetas e da plenitude do Evangelho, e expor de modo variado e abundante cada uma delas. Entretanto, não só com modéstia, mas com verdade, vendo, depois de tudo isso, quanto está longe de saber o que orar e como orar, ele afirma: “Não sabemos o que orar, como convém” (Rm 8,26).

A esta palavra, ele ajunta como tal defeito pode ser suprido por aquele que, embora não sabendo, se esforça por ser digno de ver suprida a sua inépcia. Diz, com efeito, que “o próprio Espírito suplica por nós a Deus com gemidos inefáveis. Aquele que perscruta os corações, conhece o pensamento do Espírito, que suplica a Deus pelos santos” (Rm 8, 26-28). O Espírito que grita nos corações dos bem-aventurados, “Abba, Pai”, e sabe que, sem dúvida, os gemidos emitidos pelos pecadores e transgressores nesta nossa tenda servem-lhes mais de gravame do que de alívio, roga junto de Deus com gemidos inefáveis, acolhendo em sua bondade e misericórdia os nossos gemidos.

Vendo em sua sabedoria, “humilhada na terra a nossa alma”, que se acha “contida num corpo humilhado” (cf. SI 43,26), ele roga junto de Deus com gemidos, não quaisquer, mas inefáveis, afins “daquelas palavras arcanas que não é lícito ao homem proferir” (2 Cor 12,4).

Não contente de rogar, aquele Espírito usa uma oração mais intensa por aqueles que, simplesmente, segundo minha opinião, triunfam, como era Paulo, ao dizer: “Mas em todas estas circunstâncias triunfamos” (Rm 8,37).

Mas é provável que ele rogue apenas pelos incapazes de “triunfar”, por aqueles que não se deixam vencer, mas simplesmente vencem.

4 Esta palavra: “Não sabemos o que orar como convém, mas o próprio Espírito suplica por nós a Deus com gemidos inefáveis” (Rm 8,26), é afim daquela outra: “Orarei em espírito, orarei também na mente; salmodiarei em espírito , salmodiarei também na mente” (1 Cor 14,15).

Não pode, com efeito, a nossa mente orar, a não ser que antes, fique à escuta do Espírito a orar. Como não pode ela cantar nem louvar com melodia, medida e harmonia o Pai em Cristo, a não ser que o Espírito, que tudo perscruta, inclusive as profundezas de Deus (cf. 1 Cor 2, 10), comece a louvar e cantar Aquele, do qual perscrutou as profundezas, e como podia, as compreendeu.

A meu ver, foi pela consciência da insuficiência e fraqueza humanas para captar e conhecer o modo conveniente de orar, e sobretudo, pelas palavras sábias e sublimes que o Salvador pronunciara em sua oração ao Pai, que um dos discípulos de Jesus disse, depois que o Senhor cessou de orar: “Senhor, ensina-nos a orar, como também João ensinou aos seus discípulos” (Lc 11,1).

Este dito consta do seguinte contexto: “Aconteceu que, estando Jesus a orar em certo lugar, ao terminar, um dos seus discípulos lhe disse: Senhor, ensina-nos a orar, como também João ensinou aos seus discípulos”.

É, acaso, possível que um homem nutrido pelo ensino da Lei, pela audição das palavras dos profetas, assíduo em freqüentar a sinagoga, não soubesse orar antes de ter visto o Senhor orar à em determinado lugar? É absurdo dizer isto. Na verdade, ele orava conforme o costume judaico, mas percebeu que precisava de maior conhecimento a respeito da oração.

Que é, pois, que João ensinava sobre a oração aos seus discípulos vindos de Jerusalém e de toda a Judéia e das vizinhanças, para serem batizados por ele?

Acreditaríamos, talvez, que, sendo ele mais do que um profeta, teria visto em matéria de oração algumas coisas que não ensinava a qualquer um que viesse para ser batizado, mas apenas, em segredo, aos que se tornavam seus discípulos, antes mesmo de serem batizados.

5 Tais orações, em realidade espirituais, pois o Espírito ora no coração dos santos, são descritas como repletas de doutrinas secretas e maravilhosas.

Com efeito, no Primeiro Livro dos Reis, assim é, ao menos em parte, a oração de Ana. Ela não precisou de fórmula, “quando multiplicava preces em presença do Senhor, falando-lhe no seu coração” (cf. 1 Sm 1,11-13).

Entre os Salmos, o décimo sexto tem por título: “Oração de Davi”, e o 89 é uma “oração de Moisés”, servo de Deus. O Sl 101 é a “oração de um pobre, quando estava aflito e derramou a sua oração diante do Senhor”. Estas orações, sendo realmente preces feitas e pronunciadas no Espírito, são cheias de ensinamentos da Sabedoria divina, de modo que se pode dizer das coisas que nelas se anunciam: “Quem é sábio e entende estas coisas? Quem é inteligente, e as conhecerá?” (Os 14,10).

Assim, sendo tão difícil falar da oração que exige a iluminação do Pai, o ensinamento do Verbo Primogênito e a cooperação do Espírito Santo, para se entender e para se tratar dignamente desse assunto, pedirei como homem (pois não pretendo compreender a oração do Espírito, antes de ter sido esclarecido sobre a natureza da oração), que me seja concedida uma palavra plena e espiritual, e assim possa explicar as orações comuns do Evangelho. Importa, pois agora, começar o discurso sobre a oração.