Orígenes — COMENTÁRIO AO EVANGELHO SEGUNDO SÃO JOÃO
(trecho da Introdução: P.G. 14, 26-32; S.C. 120 — tradução Cirilo Folch Gomes)
Já que nossa atividade e nossa vida estão consagradas a Deus — pois aspirando aos bens superiores, nós as queremos, salvo engano, como primícias tomadas dentre primícias — minhas pesquisas, desde o dia em que nos separamos .um do outro *, poderiam acaso versar sobre outra coisa que não o estudo do Evangelho?
Sim, ousamos dizer que o Evangelho constitui as primícias de todas as Escrituras. Mas então não seria precise que as primícias de minha atividade, desde o retorno a Alexandria, versassem sobre as primícias da Escritura?
Sabemos, com efeito, que as primícias e os primeiros frutos não são a mesma coisa: oferecemos as primícias após a colheita, os primeiros frutos, antes. E não seria falso dizer que entre as Escrituras transmitidas pela tradição e consideradas como divinas em todas as Igrejas de Deus, a Lei de Moisés constitui os primeiros frutos e o Evangelho as primícias. Porque, após os frutos dos profetas, que se sucederam até o Senhor Jesus, germinou a Palavra perfeita.
Alguém, contudo, objetará talvez a propósito desta explicação que 239 estamos fazendo. Dirá que aos evangelhos se seguiram ainda os Atos e as Cartas dos apóstolos e, portanto, não estaria certo dizer que eles sejam as primícias de toda a Escritura. Responder-lhe-íamos que nas epístolas, transmitidas até nós, se acha o pensamento de homens sábios no Cristo e assistidos por ele, mas os quais têm necessidade, para serem cridos, do testemunho da Lei e dos Profetas. Eis por que se dirá que as palavras dos apóstolos são sábias, dignas de crédito, mui justas, mas não se comparam a aquele: “eis o que diz o Senhor todo-poderoso”.
A este propósito, observo que Paulo, dizendo: “toda Escritura é inspirada por Deus e útil”, inclui nisso seus próprios escritos. Ao escrever, porém: “não é o Senhor quem o diz, mas eu”, ou: “instituo esta regra em todas as igrejas”, ou ainda: “os sofrimentos que padeci em Antioquia, Icônio e Listra”, ou coisas semelhantes, não parece que tais passagens, embora revestidas de uma autoridade apostólica, não têm o valor absoluto das palavras diretamente emitidas por Deus?
De outro lado, convém assinalar que o Antigo Testamento não é um evangelho, pois não mostra “aquele que deve vir”; apenas o anuncia. Ao contrário, todo o Novo Testamento é Evangelho, pois não somente diz, no início: “eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo”, mas contém louvores e ensinamentos diversos daquele por quem o evangelho é um Evangelho.
Aliás, desde que Deus estabeleceu na Igreja apóstolos, profetas e evangelistas como pastores e como doutores, se consideramos qual é a tarefa do evangelista — ora, não é precisamente narrar como o Salvador curou um cego de nascença, ressuscitou um morto já em decomposição ou realizou tal eu qual milagre, mas o evangelista se deixa reconhecer em suas palavras de exortação para suscitar a fé quanto a Jesus — não hesitaremos em dizer que os escritos apostólicos são, à sua maneira, um evangelho.
Se se recusa nossa segunda explicação, afirmando-se que erramos ao chamar todo o Novo Testamento um evangelho, pois as epístolas não levam esse título, responderemos que em numerosas passagens das Escrituras dois ou mais objetos são designados pela mesma palavra, a qual só é tomada em sentido próprio para um deles. Assim, embora o Senhor tenha dito: “não deis a ninguém na terra o nome de mestre”, o Apóstolo declara que mestres foram estabelecidos na Igreja. Eles não serão mestres, pois, no sentido estrito em que o termo é tomado no Evangelho. Assim, nem todo pormenor das epístolas será considerado como um evangelho, se se compara ao relato das ações, sofrimentos e palavras de Jesus.
Resta que o Evangelho constitui as primícias de toda a Escritura, e a ele consagraremos as primícias dos trabalhos que esperamos empreender.
De minha parte, penso que os quatro evangelhos são como os elementos da fé da Igreja — esses elementos com os quais se edifica o mundo reconciliado com Deus no Cristo, como o diz Paulo: “Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo”. Deste mundo Jesus assumiu o pecado, pois é ao mundo da Igreja que se refere a palavra: “eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo”. E eu penso que as primícias dos evangelhos se acham no texto que nos pedes para explicar, enquanto possível, isto é, no evangelho de João, o qual, para falar daquele cuja genealogia os outros traçaram, começa por onde ele não tem genealogia.
Com efeito, Mateus, escrevendo para judeus que esperavam o filho de Abraão e de Davi, diz: “Genealogia de Jesus Cristo, filho de Abraão”; e Marcos, sabendo bem o que escrevia, pôs: “Início do Evangelho”, cujo fim nós encontramos em João, isto é, no Verbo que existia no princípio, no Verbo de Deus. Ê Lucas também reserva àquele que repousou sobre o peito de Jesus os discursos maiores e mais perfeitos sobre Jesus. Nenhum deles mostrou sua divindade de modo tão absoluto como João que lhe fez dizer: “eu sou a luz do mundo”, “eu sou o caminho, a verdade e a vida”, “eu sou a ressurreição”, “eu sou a porta”, “eu sou o bom pastor” e, no Apocalipse, “eu sou o alfa e o ômega, o começo e o fim, o primeiro e o último”.
É preciso dizer, pois, que de todas as Escrituras os evangelhos são as primícias e, entre os evangelhos, as primícias são o evangelho de João, cujo sentido ninguém pode captar se não se reclinou sobre o peito de Jesus e se não recebeu de Jesus a Maria por mãe. E, para ser outro João, é preciso tornar-se tal que, como João, se ouve designado por Jesus como sendo o próprio Jesus. Ora, segundo aqueles que têm dela uma opinião sã, Maria não tem outro filho senão Jesus; portanto, quando Jesus disse a sua mãe: “Eis aí teu filho” e não: “Eis, esse homem é também teu filho”, é como se lhe dissesse: Eis aí Jesus, a quem tu geraste. Com efeito, quem quer que tenha chegado à perfeição “não vive mais, porém Cristo vive nele” e, se Cristo vive nele, dele é dito a Maria: Eis aí teu filho, o Cristo.
Será necessário dizer que entendimento seja necessário para se interpretar dignamente a palavra depositada nos tesouros frágeis da linguagem comum, a letra que todos lêem, a palavra tornada sensível e que todos pedem ouvir? Para se entender esse Evangelho é preciso poder-se dizer com a verdade: “Nós temos a mente de Cristo, e é assim que conhecemos as graças de Deus”.