Origenes Escritura

Orígenes — Tratado da Oração
XIII Cristo, a Escritura, a experiência
1 Se Jesus ora, e não em vão, obtendo pela oração aquilo que, talvez, não receberia sem a oração, quem de nós poderá ser negligente em orar?

Marcos, com efeito, diz: “Levantando-se bem cedo, (Jesus) foi a um lugar deserto, e ali orava” (Mc 1,35). Lucas, por sua vez, escreve: “E aconteceu que, estando ele em oração em certo lugar, ao cessar, disse um dos seus discípulos” (Lc 11,1). E em outra passagem: “Passou a noite em oração a Deus” (Lc 6,12). E João assim descreve a sua oração: “Assim falou Jesus e, elevando os olhos ao céu, disse: Pai, veio a hora, glorifíca o teu Filho, para que o teu Filho te glorifique” (Jo 17,1). As palavras: “Eu sabia que tu me escutas sempre” (Jo 11,42), ditas pelo Senhor, segundo o mesmo evangelista, mostram que aquele que sempre ora, é sempre ouvido.

Será, acaso, necessário recordar aqueles que, tendo rezado como convém, obtiveram de Deus os maiores benefícios? Cada um pode facilmente escolher muitos exemplos da Escritura.

Ana, por exemplo, privada de prole, rogou ao Senhor com fé, e gerou Samuel (cf. 1 Sm 1,10), comparado a Moisés (cf. Jr 15,1). Ezequias, ainda sem filhos quando Isaías lhe anunciou que ia morrer, orou e pôde ser inscrito na genealogia do Salvador (cf. Is 38,1-2; Mt 1,9-10).

Quando o povo estava ameaçado de perecer por um decreto devido às intrigas de Amã, a oração de Mardoqueu e de Ester, unida ao jejum, foi atendida, e além da festa instituída por Moisés, o dia de Mardoqueu trouxe alegria ao povo (cf. Est 3,6.7; 4,16; 7,1; 9,26-28).

Também Judite, depois de ter elevado a Deus uma santa oração, com a sua ajuda, venceu Holofernes, e assim uma mulher hebréia envergonhou a casa de Nabucodonosor (cf. Jt 13,4-9). Ananias, Azarias e Misael foram ouvidos em sua oração, e mereceram ver soprar “um vento fresco” que impediu a ação do fogo (cf. Dn 3,24-50). E na cova da Babilônia, as orações de Daniel fizeram fechar a boca dos leões (cf. Dn 6,18.22). E Jonas, que não perdera a esperança de ser escutado no ventre da baleia que o engolira, dali saiu e pôde cumprir a sua missão profética entre os ninivitas (cf. Jn 2,3-4).

E nós mesmos, quantos benefícios teríamos de narrar cada um de nós, se os quisermos recordar para, de ânimo grato, louvar a Deus?

Almas por longo tempo estéreis, quando tomaram consciência de não ter feito nada e de ser espiritualmente estéreis, conseguiram por sua oração perseverante, pelo Espírito Santo assim conceber, e gerar palavras de salvação, cheias de conhecimento (gnosis) da verdade.

E quantos também, foram os inimigos prostrados, dentre os milhares adversários que nos atacam muitas vezes, tentando derrubar-nos tirando-nos a fé?

Mas nós não desanimamos, invocando: “Uns confiam nos carros, outros nos cavalos, enquanto nós confiamos no Nome do Senhor” (Sl 19,8), e vemos que “é inútil o cavalo para a salvação” (Sl 32,17).

Entretanto, até o príncipe da milícia inimiga, de palavra enganadora e insinuante, que atemoriza muitos dos que se consideram fiéis, é batido por aquele que confia no louvor de Deus. O nome de Judite significa justamente: Louvor. Quantos são, com efeito, os que, vítimas de tentações difíceis e mais ardentes do que o fogo, nada sofreram, saindo delas totalmente ilesos, livres mesmo do menor odor das chamas do inimigo? (cf. Dn Cântico dos Três Jovens 3,25-45. 51-90). Que necessidade temos de dizer mais? Quantos animais ferozes, cheios de raiva contra nós, isto é, os espíritos malignos e homens perversos, irritados contra nós, tiveram a boca fechada graças à oração, de modo que não puderam ferrar os seus dentes em nossos membros, membros do Cristo? Muitas vezes, na verdade, por algum dos seus santos, “o Senhor quebrou os dentes dos leões, e eles foram aniquilados como água que escorre” (Sl 57,7-8).

Soubemos, muitas vezes, de homens que se afastaram dos mandamentos divinos e, feitos prisioneiros da morte, foram por ela devorados. Pela penitência, no entanto, foram, em seguida, salvos de tão grande mal, porque, apesar de já presos no ventre da morte, não desesperaram da salvação: “A morte, prevalecendo, os devorara, mas Deus, de novo, enxugou as lágrimas de toda face” (Is 25,8).

4 Julguei ser necessário dizer tudo isso, depois de enumerar aqueles que foram beneficiados pela oração. Meu propósito é dissuadir os que aspiram à vida espiritual em Cristo, de pedir na oração, coisas terrenas e sem importância. Possam os leitores deste escrito anelar pelos bens místicos, dos quais são imagens os exemplos acima mencionados. Toda oração voltada para tais dons espirituais e místicos, sempre é feita por quem milita “não segundo a carne”(2 Cor 10,3), mas mortifica “com o espírito os atos da carne” (Rm 8,13), preferindo os bens oferecidos a quem busca o sentido espiritual da Escritura, em vez dos que parecem beneficiar aos que oram segundo a letra.

Devemos, com efeito, cuidar, com todo empenho que não fiquemos inteiramente sem filhos e estéreis mas, sim, que escutemos com ouvidos espirituais a lei espiritual. Assim seremos ouvidos como Ana e Ezequias. E seremos libertos, como aconteceu a Mardoqueu, a Ester e a Judite, dos inimigos espirituais e malignos que nos lançam ciladas. O Egito é um forno de ferro (cf. Dt 4,20; Jr 11,4), símbolo de toda condição terrena. Assim, todo aquele que foge do mal existente na vida humana, e não se deixou inflamar pelo pecado, e não tem o coração cheio de fogo como uma fornalha, há de dar graças como aqueles que foram provados pelo fogo que refrigera, como rocio (cf. Dn Cântico dos Três Jovens 3, 25-45.51-90).

Igualmente, quem foi ouvido ao orar e dizer: “Não entregues às feras a alma que te confessa” (Sl 73,19), e que nada sofreu da parte da serpente e do basilisco, por ter, em virtude do Cristo, caminhado sobre eles e esmagado o leão e o dragão (cf. Sl 90,13); quem, enfim, usou do nobre poder dado pelo Cristo de “calcar serpentes e escorpiões e toda potência do inimigo, que pisou leões e dragões” (Sl 90,13; cf. Lc 10,19), e não sofreu deles nenhum dano, deve dar maiores graças do que Daniel, pois ficou livre de feras mais ferozes e nocivas. Além disso, quem compreendeu de qual fera é símbolo a baleia que engoliu a Jonas, e entendeu que é dela que fala , ao dizer: “que a amaldiçoem os que amaldiçoam o dia, dispostos a despertar a grande Besta” ( 3,8), este homem, se por acaso, em razão de alguma desobediência, vem a se achar no ventre desse monstro, se arrependa e ore, e daí será libertado. Saindo de lá, e perseverando fiel aos mandamentos de Deus, poderá, com a ajuda do Espírito que sopra, profetizar aos nini-vitas que então se perdiam, e ser para eles ocasião de salvação. Pois tal homem já tem experiência da misericórdia de Deus e espera que ele não seja rigoroso com os que se arrependem.

5 Segundo a Escritura, Samuel realizou com a sua oração um grande prodígio. Aquele que está sinceramente unido a Deus, pode fazer o mesmo agora, espiritualmente falando. Está, com efeito, escrito: “Agora, levantem-se para ver o grande prodígio que o Senhor está para fazer diante dos seus olhos. Não estamos nós na hora da colheita do trigo? Invocarei o Senhor e ele dará trovões e chuva” (1 Sm 12,16-17). E pouco adiante: “Samuel invocou o Senhor, e o Senhor deu trovões e chuva naquele dia” (1 Sm 12,18). A todo santo, a todo discípulo autêntico de Jesus, diz o Senhor: “Levantai os olhos e vede os campos, como já estão brancos para a colheita. Já o ceifeiro recebe o seu salário e recolhe fruto para a vida eterna” (Jo 4,35.36).

No tempo da colheita, o Senhor realiza um grande prodígio diante daqueles que escutam os profetas. A todo aquele que, preparado pelo Espírito Santo, invoca o Senhor, Deus envia do céu trovões e a chuva que irriga a alma. Desse modo, quem antes estava em pecado, passe agora a ter grande reverência pelo Senhor e dispensador de graças divinas, revelado como venerável e augusto por escutar as suas orações.

Elias, que fechou os céus por três anos e meio aos ímpios, os reabriu depois por ordem de Deus. É o que faz também aquele que, por meio da oração, recebe a chuva da alma, que antes lhe faltava por causa do pecado (cf. Tg 5,17-18; Lc 4,25; 1 Rs 17,8-16).