Biblioteca de Nag Hammadi
Ogdoade e Eneade (VI,6)
Tradução de J. P. Mahé, in BCNH, n.° 3, 1978. (trad. em português de Álvaro Campos)
Na ausência de indicação antiga, o título deste tratado é moderno, parecendo captar bem a natureza deste escrito: Ogdoade e Eneade são a oitava e a nona esferas que cercam a terra. Depois das sete primeiras esferas, dos astros, e das forças de que depende a vida dos homens, a oitava e a nona abrem as portas do reino divino. A alma do morto deve atravessar essas diversas esferas. As sete primeiras são muito perigosas para a alma, que deve apresentar uma senha a cada etapa para progredir em direção ao alto. As duas últimas esferas concretizam a união total com a divindade. É fácil compreender o alcance metafórico dessa viagem espiritual, que nada mais é do que a descrição de uma iniciação. Nós já vimos esse tema nos textos sobre o retorno da alma (Apocalipse de Paulo, Primeiro Apocalipse de Tiago e Segundo Apocalipse de Tiago).
O tratado é hermético, próximo a outros escritos do mesmo filão, particularmente os que estão alinhados no Corpus Hermeticum. Essa corrente de pensamento não-cristão deixou marcas nos escritos de Nag Hammadi. Formalmente, para Ogdoade e Eneade, trata-se do diálogo entre mestre (no caso, Hermes Trismegisto) e discípulo (o “filho”). O primeiro inicia o segundo no conhecimento secreto e o guia para a experiência mística. Quanto ao conteúdo, trata-se de recomendações, preces e votos que implicam doutrinas reservadas a iniciados, bem como elementos dualistas mais abertamente gnósticos. A estrutura do tratado é a seguinte: preâmbulo, p. 52,1-13; introdução magisterial, p. 52,13-55,5; iluminação mística, p. 55,6-61,17, e epílogo, p. 61,18-63,23.
Eis um extrato do diálogo entre o mestre e o discípulo, maravilhado com seus progressos e estimulado a ir mais adiante (p. 54,13-30):
Ó, meu Pai, o progresso que apresento atualmente é a presciência que adquiri, no mesmo nível que as descendências1, ultrapassam a deficiência que estava em mim no começo. — O, meu filho, quando conceberes a verdade de tua palavra, encontrarás teus irmãos orando contigo, eles que são meus filhos. — Ó, meu Pai, não concebo nada mais do que a beleza que me aconteceu entre as descendências, aquelas que tu chamas “beleza da alma”. — A edificação operou-se em ti gradualmente. Se puder vir-te a intelecção, tu estarás instruído.
A p. 55,23-56,26 propõem modelo de prece de Hermes e seu discípulo ao Deus invisível. Pela primeira vez, eles pronunciam o nome do Deus invisível, invocado em silêncio, sob a forma de longa sequência de vogais:
Oremos, ó meu Pai. — Eu te invoco, aquele que domina o reino da força, aquele cujo Verbo se faz nascimento de luz e cujas palavras (são) imortais, eternas e inalteráveis, aquele cujo desejo gera a vida das imagens em todo lugar. Sua natureza dá forma à essência: é (a partir) dele que se movem as almas e (as forças e) os anjos. (Pois é ele cujo) Verbo se estende para (todos) os seres que existem. Sua providência chega a cada um (no) Lugar. Ele gera cada um. É aquele que partilhou o Eão entre os espíritos: ele criou todas as coisas. É aquele que se possui a si mesmo nele, sustentando todos os seres em sua plenitude, o Deus invisível, a quem nos dirigimos em silêncio. Sua imagem se move dispensando-se e se dispensa (movendo-se). Força da Força, (tu) que és maior que a grandeza, mais glorioso que as glórias, Zôxathazô, a ôô e e ôôôêêêôôôô (iiii) ôô ôôôooooooôôôôôôuuuuuuôôôôôôôôôôôôôôô, Zôzazôth,Senhor, concede-nos uma sabedoria saída de tua Força (e) chegando até nós, a fim de que participemos parte (mutuamente) da contemplação de Ogdoade e de Eneade.
Duas iluminações seguem-se a essa prece. A segunda é a visão de Hermes no Noûs (p. 59,23-61,1):
— Pai, Trismegisto, o que direi? Nós recebemos esta luz e eu vejo essa mesma visão em teu interior. E eu vejo o Ogdoade com as almas (que estão) nele e os anjos dirigindo seus hinos ao Eneade e às suas Forças. E eu o vejo, a ele, provido de todas as suas Forças (e) que cria no Espírito.
O próprio tratado registra a linguagem esotérica que o Mestre emprega para encorajar o discípulo a escrever o texto em esteias de turquesa:
Esse livro, ó, meu filho, escreve-o para o templo de Dióspole, em caracteres hieroglíficos, apelando para o nome de Ogdoade (que) revela o Eneade. — Eu o farei, ó, meu (Pai), como tu me prescreves. Agora, ó, meu Pai, (devo) escrever o texto desse livro em esteias turquesas? — Ó, meu filho, convém que escrevas esse livro em esteias turquesas com caracteres hieroglíficos. Pois foi o próprio Intelecto que se tornou o seu guardião. É por isso que ordeno que esse discurso seja gravado sobre a pedra e que o coloques no interior de meu santuário, sob a guarda de oito guardiães e dos nove do sol (p. 61,18-62,6).
Por fim, o escrito conclui com instruções para a proteção do livro contra o mau uso:
Escreve portanto uma fórmula imprecatória sobre o livro, a fim de que o Nome não seja desviado para maus fins por aqueles que lerão o livro e para que eles não lutem contra as obras do destino. Que eles se submetam muito mais à lei de Deus, sem transgredi-la em nada, mas que, com pureza, eles peçam a Deus sabedoria e gnose (p. 62,22-23).
Trata-se dos filhos espirituais gerados pelo mestre. ↩