Aldous Huxley — Nuvem do Desconhecido
Retirado do livro “Eminência Parda”, Globo, 1943
Benet de Canfield era um homem ilustrado e, como tal, lera não apenas o Areopagita, mas todos os místicos importantes da Idade Média e do século XVI, a quem os escritos do Pseudo-Dionísio tinham servido de inspiração e, confortadora garantia da ortodoxia adotada. Todo artista nasce com certos talentos especificamente seus; mas tem de desenvolvê-los dentro dos quadros da tradição artística em vigor. O mesmo se dá com o místico, cuja vida religiosa consiste na ação recíproca das aptidões espirituais inatas e da tradição dentro da qual labora e reflete. Qual a natureza da tradição, a um tempo filosófica, ética e psicológica, em que frei Benet foi educado? A fim de responder a esta pergunta, devo fazer a exposição resumida de um livrinho que é a mais bela flor da literatura mística medieval. Escrito por um inglês anônimo do século XIV, a Nuvem da Ignorância é, a um tempo, profundamente original e amplamente representativa do seu gênero. Era seu autor um homem que combinava altos dotes espirituais e um notável talento filosófico e literário com um profundo conhecimento e amor da tradição. No âmbito restrito deste livrinho figura, em sua essência, todo o desenvolvimento medieval do misticismo dionísico e, ao mesmo tempo — como observa um escritor católico moderno, o padre John Chapman — “parece condensarem-se todas as doutrinas de São João da Cruz com cem anos de antecedência”.
Que frei Benet conhecia este livrinho é inegável porque, no admirável comentário que faz à “Nuvem”, o padre Augustine Baker, monge beneditino inglês e teólogo místico, quase contemporâneo exato de frei José, recorda que seu exemplar manuscrito do livro “pertenceu à biblioteca particular de frei Benet Fitch, nosso compatrício, o capuchinho que escreveu o livro intitulado A Vontade de Deus, e foi encontrado depois de sua morte entre outros livros de sua biblioteca”. Bem merecia o livro figurar ali!
O título da obra enfeixa a sua doutrina central. A “nuvem da ignorância” é o mesmo que o Areopagita chama “a treva superluminosa” — o impenetrável mistério do aleamento divino. A realidade essencial é incomensurável com nossa natureza ilusória e nossas imperfeições: não pode ser apreendida por meio de operações intelectuais, porque estas dependem da linguagem, e o nosso vocabulário, como nossa sintaxe, são feitos expressamente para lidar com essa imperfeição e essa natureza ilusória, incomensuráveis com Deus. Só intuitivamente se pode apreender a realidade essencial, mediante um ato da vontade e dos sentimentos. “Plus diligitur quam intelligitur” era um lugar-comum da filosofia escolástica. “O amor pode ir mais longe que o entendimento, pois o amor penetra onde a ciência fica do lado de fora. Amamos a Deus na Sua essência, mas não o vemos na Sua essência.”
O autor da “Nuvem” trata muito por alto das especulações metafísicas. Para ele, como para Buda, pensar em problemas a que, pela natureza das coisas, o pensamento expresso em palavras não pode achar resposta, parece uma perda de tempo e um obstáculo ao progresso espiritual. Tampouco lhe interessa citar a opinião alheia. “Outrora os homens reputavam delicadeza nada dizer por si mesmos, a não ser apoiando-se na escritura e nas palavras dos doutores; mas agora este hábito cedeu lugar ao gosto e à exibição de saber.” Com estas opiniões sobre o saber e sobre a especulação, o autor deixa sem explicação os detalhes do sistema filosófico em que se baseia o seu misticismo prático. Mas, por tudo o que diz, evidencia-se que aceitava a hipótese, então adotada pelos teólogos místicos, quanto à relação existente entre Deus e o homem. Segundo essa hipótese, há, dentro de nossa alma, algo que recebeu os variados nomes de “sinderesis”, “centelha”, “fundamento da alma” ou “ápice da mais alta vontade”. Deste divino elemento quase todos os homens são inconscientes, porque têm toda a atenção concentrada nos objetos de seus desejos e aversões. Mas, se preferirem “morrer para si mesmos”, poderão tomar consciência desse divino elemento interior e, com ele, experimentar a Deus. A quem quer que o deseje e esteja disposto a preencher as condições necessárias, o transcendente pode tornar-se de certo modo imanente dentro da centelha, no ápice da mais alta vontade.
Esta teoria apresenta profunda semelhança com aquela que, desde tempos imemoriais, serve de essência ao pensamento hindu. Mas, ao passo que os místicos orientais nunca hesitaram em estabelecer completa identidade entre a centelha e o próprio Deus, os cristãos adotaram, em geral, uma atitude mais prudente. “Tu és Isto”, afirmam os hindus; o atman é da mesma substância que Brahma. O místico sufi podia dizer: “Fui de deus em deus, até que eles me gritaram do interior de mim: Oh tu eu!” Para os místicos cristãos, a criatura e o criador eram incomensuráveis e a possibilidade de união com Deus não implicava a identidade substancial da centelha com aquilo a que se unia. É bem verdade que algumas afirmações dos místicos germânicos e, posteriormente, dos flamengos, apresentam um odor positivamente hindu. Mas era esta, precisamente, a razão que tornava escritores como Mestre Eckhart suspeitos às autoridades eclesiásticas. Neste particular, o autor de “A Nuvem” é estritamente ortodoxo. A alma do homem pode tornar-se “una com Deus”, mas nem por isso é da mesma substância que Ele. “Só por Sua misericórdia, e não por teus esforços, serás feito um Deus em graça, com Ele unido em espírito, sem separação, ambos presentes na felicidade infinita do céu. De modo que, embora sejas com Ele uno na graça, ainda estás muito aquém dele em natureza.” Esta “unificação” da divindade com a centelha da alma nunca pode ser completa na vida presente. A plena visão beatífica é reservada para a eternidade e, em certo sentido, é a própria eternidade. Porque a alma “é imortal enquanto é capaz de visão beatífica”. Ut beatificabilis, est immortalis.
Encarnados, os homens não são suficientemente fortes para poderem suportar a plena experiência de Deus sem risco de lesão física ou morte. Ou, nas palavras do cardeal Pierre_de_Bérulle: “Deus é infinitamente desejável e infinitamente insuportável. E quando Lhe apraz aplicar-se a suas criaturas sem se proporcionar a elas, torna-se insuportável ao ente criado, que se sente, abismado e arruinado por esse poder infinito.” Do mesmo modo, afirmam os hindus que, além de certa dose, o supremo samadhi é fatal ao corpo de quem o experimenta.