Serpente [PNHI]

VIDE: Eva Serpente Maçã


A SERPENTE OU A FASCINAÇÃO LÓGICA

A figura mitológica da serpente do relato do Jardim do Éden deu lugar a muitas especulações. Que representa este animal falante? Satã, o Adversário, o Espírito do Mal, o anjo Samael? Contrariamente ao que deixa entender a tradução corrente, o texto não diz que é uma criatura de Deus. Deve-se ler (Gen 3,1): “A serpente era mais astuta que todos os animais que YHWH tinha feito” e não “o mais astuto de todos os animais selvagens…”. O adjetivo astuto, que caracteriza esta criatura fictícia é ainda mais significativo. Traduzindo “aroum” em hebreu tem a conotação pejorativa em francês. Mas se referirmos às dez outras ocorrências deste adjetivo na Bíblia nota-se que duas vezes somente é traduzido com esta conotação, e oito vezes com a conotação oposta.

Os oito casos positivos se encontram no Livro dos Provérbios e cada vez a Bíblia de Jerusalém traduz aroum por “avisado”, “precavido”. Entre as citações há uma bem interessante para esclarecer nosso texto: “As pessoas avisadas se fazem do saber (Daat) uma coroa” (Pr 14,18). É um elogio.

Qualidade ou falha, avisado ou astuto, o que une estas duas conotações é a inteligência, a sutilidade de espírito. E o sentido sutil domina na Bíblia. A serpente astuta ou sutil personifica uma faculdade intelectual em relação com o saber (Daat) ou a ciência (Daat) é a mesma palavra em hebreu e é aquela da famosa árvore (Árvore do Conhecimento) se se junta “em tudo”. Nenhuma dúvida é possível. A serpente não é um porta-voz da tentação moral ou do instinto sexual, como não se pára de dizer. É a voz interior, ou melhor uma das vozes interiores do debate contínuo do pensamento reflexivo na lida consigo mesmo, que, se debatendo com os limites que a realidade aponta a seus conceitos, tem tendência de querer os ultrapassar na pseudo realidade da linguagem por um movimento de vai e vem, tese, antítese, síntese, que se chama dialética.

“A Mulher viu que a árvore era (…) desejável para adquirir o entendimento” (Gen 3,6). Eben Ezra, o racionalista, comenta: Ela viu em seu coração”. O coração é o órgão da inteligência na Bíblia. Se chocando com os limites que aponta para seu conceito de “aquilo que é bom” a realidade — aqui a ordem de Deus interditando de comer desta árvore —, a Mulher, sensível ao argumento da serpente (quer dizer a sua sutilidade) que é um argumento linguístico, segundo o qual a onisciência analiticamente, quer dizer o conhecimento do “tov” e do “ra”, do bom mas também do mau, “vê no seu coração”, imagina que este suplemento ao “tov”, do qual ela ignora até aqui totalmente a natureza mas que, pelo fato único que se junta ao tov, lhe parece “desejável para adquirir o entendimento” — um entendimento que vai além do conceito do “tov”, ao qual se limita a realidade essencialmente boa criada por Deus.

Certamente, poderia se ter dúvida, a palavra “onisciência” é menos rica, menos sugestiva que a expressão hebraica dual que tenta traduzir. Corrige o sentido moralista ou puramente pragmático, que prestam ao drama do Jardim do Éden, das traduções, tais como “conhecimento do Bem e do Mal” ou “conhecimento da felicidade e da infelicidade”. Faz da transgressão de nossos primeiros pais seu caráter de “pecado contra o espírito” que ela reveste antes de tudo. Mas deixa na sombra o papel desempenhado pela linguagem nesta passagem da unidade à dualidade que é a “Queda“. Pelo ouvido hebreu que entende tov wara, mesmo se compreender que isto quer dizer “em tudo”, há por trás do tov que isolado significa “bom”, ra que isolado quer dizer “mau” mas que evoca também uma raiz consonântica conexa que quer dizer “outro”. Como se este ra fosse o “outro” do tov, seu duplo, seu reflexo, sua face oculta e atrativa.

O “diálogo” que a serpente engaja com a Mulher nada tem de espontâneo. É uma démarche reflexiva essencialmente lógica. A habilidade consiste em pôr então a questão em termos muito generosos, no modo interrogativo, como se se tratasse de dissipar uma mal-entendido. “Ela diz à Mulher: Deus verdadeiramente disse: Não comereis de todas as árvores do jardim?” (Gen 3,1). Ela exclama: “Do fruto das árvores do jardim comemos; é do fruto da árvore que está no meio do jardim que Deus disse: dele não comereis e aí não tocareis, em receio de morreres” (Gen 3,2-3). Ora, segundo o texto, o que Deus disse ao Homem, antes que a Mulher exista, a respeito da Árvore da Onisciência, é: “Dela não comerás, pois o dia que dela comerdes morrereis certamente” (Gen 2,17).

A exegese judia desde muito tempo notou esta diferença de formulação, que um midrash explica assim:

Desconfiando da curiosidade de sua mulher, o Homem a instruiu da interdição divina nisto adicionando por conta própria uma proibição suplementar, aquela de não tocar na árvore. Esta informação mentirosa, inspirada pela prudência, a perdeu, pois a Mulher, não sem hesitação, e talvez como por inadvertência, começou por se aproximar mais e mais da árvore, a roçá-la e enfim tocá-la. Nada de incômodo se produzindo, ela disto deduziu que ela poderia também dela comer, e que a advertência de Deus não se verificava. O Homem foi pego de certa maneira na armadilha de sua própria astúcia.

Constatemos que o Adam e a Mulher substituíram seu raciocínio à realidade da Palavra Divina, e que no caso do Adam foi para “melhorá-la”.

De pronto a serpente se animou. “Não, não morrereis, Mas Deus sabe que o dia que dela comerdes vossos olhos se abrirão, e serei dotados de onisciência como Deus” (Gen 3,5; Abriram-se os Olhos). Eis, enfim nomeada, a verdadeira tentação. Traduzir: “Sereis como deuses, conhecendo o bem e o mal”, como em Segond, a faz aparecer metafísica e moral, enquanto ela é intelectual. A forma adjetival no plural “dotados de onisciência” (“conhecendo o bem e o mal”) se relaciona a “vós” (o Homem e Mulher) e não a Deus, que deve portanto permanecer no singular. No Éden o Homem e a Mulher não têm qualquer desejo de se tornar “deuses” ou “seres divinos”. Eles já o são demais, posto que vivem no Jardim de Deus. Mas a ambiguidade da onisciência, que concebem logicamente como um ideal e como um atributo divino, os atrai. E na medida que a Mulher, raciocinando a partir da informação errada que lhe transmite o Homem, crê que ela nada tem a temer, ela decide.

O que é mais chocante neste drama, é o papel completamente passivo que desempenha o Homem. Ele aí está presente do início ao fim (a Mulher diz: “Comemos”, a serpente: “Sereis”; o texto precisa mesmo: “ela deu também a seu homem que estava com ela”). E ele não pronuncia uma palavra. Como uma cabra hipnotizada por uma cobra, não esboça a menor resistência. É ele no entanto que ouviu da boca de Deus a advertência, que lhe pareceu tão grave que creu bom “reforçá-la” em a comunicando em seguida à Mulher. E ele não tem a desculpa da Mulher que, enganada por ele, deduziu depois de ter tocado a árvore, que ela podia dela comer impunemente. Ele sabia, ele, que não era interdito tocar na árvore, mas somente dela comer. E ele dela come certamente, imitando sua mulher em lugar de pará-la em seu gesto, de dissuadi-la antes que não fosse muito tarde, como se estivesse subitamente “ausente”, em um estado de estupor total. Que se passou? Foi sua mulher que o seduziu, como alega em seguida? Deus parece repreendê-lo a princípio: “Por que escutaste (obedeceste a) voz de tua mulher” (Gen 3,17). Toda uma tradição misógina se tomou desta “desculpa” do Homem e desta reprimenda de Deus para dar a Mulher, de geração em geração, a etiqueta de “tentadora”.