No princípio era o Verbo 4-9

PRÓLOGO DE JOÃO — NELE ESTAVA A VIDA…

Versículos 4-9
Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens.(Jo I,4) E a luz resplandece nas trevas, e as trevas não a compreenderam.(Jo I,5) Houve um homem enviado de Deus, cujo nome era João.(Jo I,6) Este veio para testemunho, para que testificasse da luz, para que todos cressem por ele.(Jo I,7) Não era ele a luz, mas para que testificasse da luz.(Jo I,8) Ali estava a luz verdadeira, que ilumina a todo o homem que vem ao mundo.(Jo I,9)


Filosofia
Michel Henry: EU SOU A VERDADE

O conceito tradicional para dizer a verdade, é aquele de luz. Ora a verdade não é compreendida como luz senão porque já é entendido que a verdade da qual se trata é aquela do mundo. O que é verdadeiro em um sentido imediato, é o que se vê, ou se pode ver. Mas isto que se vê, só se vê na luz do mundo, na medida que só se vê isto que se mantém diante do olhar, “no de fora”, e que o mundo é este “no de fora” como tal. É esta equivalência entre luz, mundo e verdade, equivalência que vai por si mesma e se encontra retomada sem outra forma de processo pela quase-totalidade das concepções do conhecimento, do saber, da ciência e precisamente da verdade, quando acontece que esta seja considerada por ela mesma, como é o caso com a filosofia, que se encontra rompida no Prólogo de João.

Muito notável é aqui o fato que é precisamente no momento onde é questão da vinda do Cristo no mundo, vinda ao mundo que significa segundo o pensamento grego uma vinda na luz, que o conceito mundano desta se encontre barrado — esta luz do mundo se invertendo e se abolindo em seu contrário: as trevas. À luz do mundo que designa agora as trevas se opõe então a “luz verdadeira”, a qual não é outra senão o Cristo em sua revelação própria. Uma série de implicações decisivas que é impossível desconhecer ou ocultar se propõe então. Na vinda ao mundo, enquanto ela é uma vinda à luz, o que vem ao mundo, quer dizer na luz, se mostra nesta tal como é e, desta maneira, iluminado por ela. Se iluminando nela, encontrando nela sua própria estadia, é recebido por ela, recebido pelo mundo. Impossível por outro lado opôr a esta vinda ao mundo a luz ela mesma, a qual se encontra constituída por esta vinda ao mundo e se identifica a ela. De tal maneira enfim que em termos de luz só há uma, aquela deste mundo, e que, por esta razão precisamente, verdade e mundo só fazem um.

O fundamento desta série de implicações — a equivalência luz/verdade/mundo — vacila quando, no versículo 9 do Prólogo, João declara: «A luz verdadeira (…) veio neste mundo». Que esta luz veio no mundo pressupões que ela não lhe pertence. Se não como, sendo aquela deste mundo, se iluminando no ek-stase de seu “no de fora” e se produzindo ao mesmo tempo que este — como, idêntico a ele e tão antigo quanto ele, poderia bem aí vir? Só vem no mundo uma luz diferente desta luz do mundo, e João quebra toda equivalência possível entre luz e mundo em um só movimento pelo qual opõe à luz do mundo uma luz verdadeira que, de um mesmo movimento, rejeita nas trevas e reduz à estas a luz deste mundo.

É nesta reviravolta dos conceitos fundamentais da fenomenalidade e por causa dele que explode o drama do qual todo o cristianismo é a história. Porque a verdadeira luz é estranha àquela do mundo, ela pode precisamente não ser reconhecida neste, mais radicalmente ela não pode o ser. E é então que esta luz incapaz de se mostrar naquela do mundo, desqualifica este e a luz que lhe é próprio, fazendo dela seu contrário, as trevas. A luz do mundo não é as trevas em si mesmo: ela torna manifesta a sua maneira, exibindo nela pedras, água, árvores e mesmo homens na medida que eles aparecem eles também iluminados por ela, tais como entes neste mundo. Mas porque a luz do mundo é incapaz de iluminar de sua luz, de exibir nela e assim de receber a verdadeira Luz cuja essência é a Vida em sua auto-revelação, seu poder de tornar manifesto se modifica na impotência radical de o fazer nisto que concerne o Essencial: esta auto-revelação da Vida que é o Verbo, o Verbo de Vida. Esta transformação súbita da luz do mundo em Trevas quando surgiu a Vida se auto-revelando no Verbo, é isto que dizem com uma densidade inusitada os versículos 4 e 5 do Prólogo: «Nele estava a Vida, e a Vida esta a luz (…) E a luz brilhou nas trevas. E as trevas a rechaçaram». Este deslocamento súbito do poder de iluminação da luz do mundo se modificando em trevas quando aparece a verdadeira luz cuja essência consiste na revelação do Cristo como auto-revelação da Vida absoluta, é o Cristo ele mesmo que enuncia: «Eu, é como Luz que vim no mundo, a fim que quem quer que creia em mim não permaneça nas trevas» (Jo 12,45).