Nestorianismo

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Jean Tourniac. Luz do Oriente

Formado na Síria, o que veio a se denominar o nestorianismo1 possui um certo número de caracteres especiais entre os quais se destacam: a antiguidade histórica, os ritos e as liturgias particulares, a assimilação das tradições anteriores.

O nestorianismo se difunde a partir do centro catequético mesopotâmico de Edessa e sob a impulsão de Santo Efrem o Sírio.

Depois da perseguição comandada pelo imperador Zenon, ele se refugia na Pérsia onde a proteção do bispo Barsauma de Nisibe e de Narsai, discípulo de Ibas de Edessa, lhe permite retomar seu vigor.

No final do século V pode-se verdadeiramente falar de uma igreja nestoriana persa, aquela fundada pelo Catholicos Babai de Selêucia-Ctesiphon.

Rico de tradições locais herdadas da etnia religiosa e sociocultural ambiente, esta igreja se voltará parcialmente, alguns séculos mais tarde, para o imamismo ismaelita.

No entanto o nestorianismo não limitará seus contornos humanos e geográficos à Pérsia. Ele se expandirá na Palestina, no Egito, na África do Norte, no lado oeste da Ásia e nos “cristãos de São Tomé”. Se encontrará vigoroso e radiante na Ásia central, na Mongólia, na China, no Turquestão, no Ceilão e Malabar., e sabe-se que houve até duzentos bispados nestorianos na Ásia; mas jamais houve luz e força sem vida interior poderosa?

Os nestorianos se definiam segundo só os dois primeiros Concílios e às definições sinodais de sua igreja que, em 612, admitiam duas naturezas e duas hipóstase no Cristo, mas uma só pessoa.

Talvez se trate aí mais de terminologia que de doutrina posto que a palavra hipóstase não tinha para os nestorianos o mesmo sentido que em outros cristãos ocidentais.

É verdade que a doutrina nestoriana não cessou de ser objeto de críticas da parte da Grande Igreja. Se criticará por exemplo: as particularidades da unção batismal e a designação da Virgem Maria como “Mãe do Cristo” ou “Mãe do Filho de Deus”, mas não como “Mãe de Deus”. NO entanto trata-se de boas disputas? É preciso saber que críticas e que distinções poderiam ser feitas a partir da exegese simbólica próxima da gnose didascaliana, entre as fórmulas precedentes, aplicadas à Virgem, e as concepções da geração do Cristo “ad intra” e “ad extra”. Assim como será oportuno, antes de julgar, de se convocar as ligações simbólicas unindo a manifestação da Shekinah hebraica à incorporação do “Nome” ou do “Verbo”, do “Filho”, única revelação do Deus abscons e conhecido dele mesmo, por ele mesmo e nele mesmo, logo sem pai e sem mãe. O Apóstolo da doutrina, aquele que Jesus amava, dirá em uma referência tocante: “Deus? ninguém jamais o viu, o Filho o fez conhecer” (Jo I,18).

Pode-se mesmo se perguntar se não havia nos primeiros cristãos nestorianos uma espécie de temor de ver o cristianismo se engajar historicamente na via antropo-assimiladora, substituindo o sentido carnal e social ao sentido metafísico próprio ao intelecto, e que os teria conduzido à manter firmemente suas posições doutrinais.

Como nos monofisitas, mas ainda mais que nestes últimos, o Cristo Crucificado, o Homem de dores, é sugerido, mais que representado fisicamente. Uma sombra o recorda nos incunábulos coptas, só a Cruz permanece nos nestorianos.

A doutrina primitiva que sustentam lhes permitirá se difundir nos meios tradicionais estrangeiros à fé trinitária: aqui filósofos sírios e persas, herdeiros da tradição pitagórica, interessados pela medicina e a metafísica e transmissores do pensamento grego no islã nascente; acolá os budistas e os taoistas detentores das doutrina extremo-orientais. Sem falar no neoplatonismo florescente, tão acalentado pelos médicos nestorianos do império sassânida, como lembra Henry Corbin.

Talvez não se deve tomar o termo “nestoriano” de forma muito reduzida em seus contornos teológicos e pastorais. Melhor seria ver aí um pequeno universo de cristãos orientais associados a uma ou outra das igrejas — monofisita ou nestoriana — e de muçulmanos que entre os séculos VI e XIV, constitui um cadinho onde se misturam, por um processo de decantação espiritual e pela interferência de elementos de afinidade uns com os outros, as tradições dos magos e de Zoroastro, a medicina platônica, as matemáticas, a alquimia, as ciências naturais e numerais, o hermetismo e a astrologia, sem falar da metafísica que engloba tudo isto em lhe superando. Segundo o próprio René Guénon, os nestorianos “exerceram uma ação importante embora enigmática, nos começos do Islã”.


  1. Levando em conta a fluidez das definições das comunidades qualificadas de nestorianas no tempo dos Grandes Concílios.