GREGÓRIO NAZIANZO — QUINTO DISCURSO TEOLÓGICO
Trechos do QUINTO DISCURSO TEOLÓGICO
SOBRE O ESPÍRITO SANTO (P.G. 36, 133-172)
380 Se houve tempo em que não existisse o Pai, houve em que não existisse o Filho. Se houve tempo em que não existisse o Filho, houve em que não existisse o Espírito. Se o Um existe desde o princípio, igualmente existem os Três. Se o degradas — falo ousadamente— também não exaltar ás os dois outros. Pois a que serve uma divindade imperfeita? Que divindade pode ser se é imperfeita? E como será perfeita se algo lhe falta, como a santidade (hagiasmos), que lhe faltaria se lhe faltasse o Espírito? Acaso dever-se-á pensar em outra santidade? Mas então qual seria ela, se não existisse desde o princípio? Pois Deus teria existido de modo imperfeito se carecesse do Espírito. E se o Espírito não existisse desde o princípio, seria da mesma classe e ordem que eu, mesmo que me tivesse precedido; e assim de que maneira me divinizaria e me uniria a Deus (theosis)?
Mas julgo ser melhor tratar deste assunto com maior profundidade. Da Trindade aliás já temos discorrido.
Quanto ao Espírito Santo, os saduceus negaram sua existência, como também a dos anjos e da ressurreição, por incrível que pareça, sendo tantos os testemunhos a respeito no Antigo Testamento. Já entre os pagãos, aqueles que mais se distinguiram em questões teológicas e se aproximaram de nós, de certa forma pensaram o Espírito através de alguma imagem — diria eu — mesmo se o exprimiram sem outro nome, chamando-o por exemplo a mente universal, a inteligência exterior, etc.
Em nosso tempo alguns o têm pensado como uma força, outros como uma criatura, outros como Deus, outros enfim não se decidem por nenhuma destas opiniões, por respeito, dizem, à Escritura, que não é explícita num sentido ou em outro. Eles então não veneram o Espírito Santo, embora também não o desprezem, ficando numa situação intermediária, ou antes, numa situação deplorável.
Entre os que creem na divindade do Espírito Santo, alguns se limitam à piedade interior, outros têm a coragem de ser piedosos também na expressão oral.
E ainda conheço os tais que “medem” a Divindade. Admitem, como nós, os Três, mas pondo entre os mesmos grandes diferenças, dizendo que um é infinito quanto à essência e o poder, outro infinito só quanto ao poder, e outro finito quanto aos dois aspectos. Os tais, que assim pensam, imitam a seu modo os que designam aos Três como respectivamente Criador, Colaborador e Ministro, acreditando que a categoria e as qualidades implicadas por estes nomes correspondam a diferenças reais.
Mas não nos dirigimos aqui aos que não creem na existência do Espírito Santo e aos pagãos que deliram a respeito dela. Não desejamos, como diz a Escritura, que “o óleo dos pecadores” venha untar nosso discurso. Com os demais então, eis como iremos discutir: deve-se considerar o “Espírito Santo” subsistente em si mesmo ou em outro? No primeiro caso seria uma substância, no segundo um acidente, conforme a linguagem dos eruditos. Se acidente, tratar-se-ia de uma força de Deus: poderia com efeito tratar-se de outra coisa ou ser a força de outro? A ideia de força pareceria a mais consentânea, livre de toda composição. Mas se o Espírito Santo fosse uma força obedeceria a um impulso, não agiria por si mesmo, e cessando o impulso não existiria mais, como ocorre com toda ação. Ora, lemos que o Espírito Santo atua, pronuncia palavras, segrega determinados apóstolos (At 13,2), se aflige (Ef 4,30), se irrita e faz tantas coisas que supõem um ser dotado de movimento e não um simples movimento. Se, porém, é uma substância e não um acidente, então será preciso considerá-lo uma criatura ou o próprio Deus. Pois não se pode entender um ser intermediário, que não fosse uma coisa ou outra. Se é criatura, como nele cremos ou por ele somos aperfeiçoados? Não é o mesmo crer em algo ou crer algo: no primeiro caso referimo-nos à Divindade, no segundo a qualquer coisa. Mas se o Espírito é Deus não é algo criado, produzido, não é servo como nós, não merece um nome de humildade e inferioridade!
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382 Eis agora tua língua a preparar objeções. Dirás: Ele é então gerado eu não gerado. Se não gerado, haverá dois princípios. Se gerado, pode-se ainda distinguir: gerado pelo Pai ou pelo Filho, Se pelo Pai há dois Filhos e irmãos, talvez gêmeos, talvez não, como ocorre nos seres corpóreos (soma). Se gerado pelo Filho, ei-lo então um Deus neto.
Haverá algo de mais absurdo? É porém o que pretendem os homens sábios para maldizer e ineptos para escrever o bem. Quanto a mim, se julgasse necessária a divisão, recusaria tais nomes. Pois pelo fato de que, em razão de uma excelsa relação o Filho assim se chama (dado que não teríamos outro modo para designar alguém que precede de Deus e lhe é consubstanciai), não se segue dever-se transferir toda nomenclatura terrena de parentesco a Deus. De outra forma também se diria que Deus é de gênero masculino porque se chama Pai. Ou que a Divindade é de gênero feminino como o quer a palavra; que o Espírito é de gênero neutro porque não gera. E até, na linha das velhas fábulas de Marcião e Valentim (vide Gnosticismo), que Deus é hermafrodita, gerando o Filho com sua divina vontade.
Como porém não admitimos absolutamente a divisão inicial entre gerado e não gerado, exclusiva de qualquer termo médio, desaparecem com ela as ideias de irmãos e neto. Como efeito, onde pões aquele que, por sua procedência, deve estar entre as duas partes de tua divisão, conforme consta do ensinamento teológico do Salvador? A não ser que se omita, em nome de algum terceiro Testamento, a palavra evangélica: “o Espírito Santo, que procede do Pai” (Jo 15,26), tem-se que admitir ser ele procedente e não criatura, precedente mas não gerado, e enfim Deus que está entre o Inengendrado (ageneton) e o Gerado. Assim, Deus aparece superando as insídias daquela divisão.
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383 Qual é então a precessão do Espírito? perguntarás. Dize primeiro em que consiste a ausência de geração, no Pai, e a geração no Filho, penetrando num mistério divino. Se nós não conseguimos sequer conhecer o que temos ante os pés, se não conseguimos contar a areia do mar, as gotas da chuva, os dias do século, haveremos de penetrar nas profundezas de Deus e sondar a natureza arcana, superior a todo raciocínio e discurse?
Mas, continuará o objetante, que falta ao Espírito para ser Filho? Se nada lhe falta, por que não é Filho? — Nada lhe falta, respondemos nós, porque nada falta a Deus; mas a diferença de manifestação dos Três, e de sua mútua relação, acarreta-lhes a diferença dos nomes. Nada falta ao Filho para que fosse Pai, pois a filiação não é uma deficiência, e nem por isto ele é o Pai. Senão, seria preciso dizer que algo falta ao Pai para que seja Filho, pois o Pai não é o Filho. Sem deficiências ou graus de subordinação na essência divina, quando se diz “ser inengendrado, ser gerado e proceder” (ageneton) designam-se o Pai, o Filho e o Espírito Santo, e assim se mantém a distinção das três Hipóstases da única natureza e dignidade do ser divino. O Filho, com efeito, não é Pai, pois só há um Pai, mas é o que é o Pai; o Espírito, que procede de Deus, não é Filho, pois só há um Filho, mas é o que é o Filho. Os Três são Um, se consideras a divindade, e o Um são Três se consideras as propriedades. E nem a unidade favorece (a heresia de) Sabélio, nem a trindade favorece a perniciosa divisão, hoje propalada.
Para nós, só há um Deus, pois uma só divindade, e os que 384 precedem da unidade a ela se referem, (embora nós creiamos que sejam três), porque um não é mais Deus, nem outro é menos Deus; um não é antes, nem outro depois; não estão divididos quanto à vontade nem distribuídos quanto ao poder; nada do que se encontra nos seres divididos aqui tem lugar; e para tudo dizermos numa palavra: a Divindade está sem divisão nos que se distinguem, como se três sóis tivessem a fusão de sua luz ao se penetrarem mutuamente. Portanto, se consideramos a divindade, a causalidade primeira, a potência, é a unidade o que nos aparece; e se consideramos aqueles nos quais está a divindade, que procedem da Causa primeira sem intervalo de tempo e com igualdade de glória, então são três os que adoramos.
Mas ora! dir-se-á talvez, os gregos não admitem, conforme seus 385 melhores filósofos, também uma só divindade — da mesma forma que no gênero humano uma só humanidade — e não obstante falam de vários Deuses, da mesma forma que dos muitos homens? Acontece que neste caso o que é comum só é único enquanto considerado pelo pensamento, distinguindo-se os indivíduos uns dos outros e estando divididos pelo tempo, pelas paixões e pelas próprias faculdades.
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386 Houve duas grandes mudanças, que também se chamam dois Testamentos e, por sua importância, dois terremotos: uma, a mudança do culto dos ídolos para a Lei, outra a passagem da Lei para o Evangelho. E há ainda um terceiro terremoto anunciado pela Escritura, o da passagem desta vida para a futura, totalmente livre de movimento e agitação.
Aconteceu porém algo de semelhante nos dois Testamentos. O quê? O fato de que não vieram de um só impulso. E por quê? Seria interessante sabê-lo: para que não fôssemos violentados mas levados pela persuasão! Realmente, o que não é voluntário não dura, como vemos em exemples da natureza. O que é voluntário, isto sim é tanto mais duradouro e firme. E assim difere o que vem da força tirânica e o que vem da divina benignidade. Deus não quis, de modo algum, impor seus benefícios, quis dá-los aos desejosos de merecê-los. Precedendo como pedagogo e médico, foi eliminando alguns ritos antigos, parcialmente admitindo outros, com a tolerância de quem sabe temperar e adoçar seus remédios. Não é fácil deixar-se de uma vez o que se prezou durante longo tempo! Por isto a Lei inicialmente manteve os sacrifícios, abolindo os ídolos; depois manteve a circuncisão, abolindo os sacrifícios; e enfim, por mudanças graduais chegaram ao Evangelho os que primeiro tinham passado de pagãos a judeus e depois de judeus a cristãos. Veja-se o testemunho de Paulo, que primeiro praticava a circuncisão e as purificações, mas adiante dirá: “se ainda eu prezasse a circuncisão por que haveria de ser perseguidor?” Cedeu à prática antes de chegar à perfeição.
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387 A partir daí pede-se entender o que se passou com a doutrina sobre a Divindade. Também neste caso ocorreu uma mudança, embora não pela abolição do que foi revelado antes e sim por acesso progressivo a uma perfeição maior. A coisa se deu do seguinte modo. O Antigo Testamento manifestou claramente o Pai e obscuramente o Filho. O Novo manifestou o Filho e obscuramente indicou a divindade do Espírito. Hoje o Espírito habita entre nós e se dá mais claramente a conhecer.
Porque teria sido inseguro pregar abertamente o Filho antes de ser reconhecida a divindade do Pai; ou, antes de ser reconhecida a divindade do Filho, impor-se, por assim dizer, a do Espírito Santo. Poder-se-ia temer que, cerno as pessoas sobrecarregadas de alimentos ou postas de súbito ante a luz do sol, fôssemos prejudicados por aquilo que ainda não pedíamos suportar. Era muito melhor que, por adições parciais e, como diz Davi, por ascensões de glória em glória, brilhasse progressivamente o esplendor da Trindade.
Por isto, penso eu, o Espírito se comunicou aos discípulos de maneira singular e adaptando-se à capacidade de cada um; no início do Evangelho aperfeiçoou-lhes as forças, depois da Paixão de Cristo foi-lhes insuflado e só após a Ascensão lhes apareceu nas línguas de fogo. Pelo próprio Cristo foi sendo revelado aos poucos, conforme se vê, prestando atenção aos textos. “Eu rogarei ao Pai”, disse ele, “e ele vos enviará outro Paráclito, o Espírito da verdade” (Jo 14,16s). Por tais palavras indicava não estar referindo-se a uma Potência diversa ou adversária da divina. Adiante dirá ainda que o Espírito seria enviado em seu nome (Jo 14,26) e então, omitindo a palavra “regarei”, conservava a referente ao envio. Depois dirá: “eu o enviarei” (Jo 16,7), para mostrar sua autoridade, e enfim dirá que o Espírito “virá” (Jo 16,8), indicando o poder do mesmo Espírito.
Vede come a luz foi chegando aos poucos, e a ordem pela qual Deus se fez revelar a nós. Essa ordem também temos de respeitar por nossa vez, não enunciando tudo sem certo prazo, nem tampouco emitindo a revelação de toda a verdade. Porque uma coisa seria imprudente e a outra ímpia. Uma correria o perigo de ferir os de fora, a outra o de afastar nossos próprios irmãos.
Aquilo então que talvez já aflorou à mente alheia mas julgo fruto de meu pensamento quero agora formular. O Salvador conhecia certas coisas que ele achava que os discípulos ainda não podiam suportar, embora já estivessem repletos de copiosa doutrina. Por isto as ocultava. Mas acrescentava que o Espírito, quando viesse, lhes ensinaria tudo (Jo 16,12; 14,26). Penso pois que entre tais coisas estava a própria divindade do Espírito Santo, a ser declarada mais abertamente quando, após a ressurreição do Salvador, o conhecimento (gnosis) de sua própria divindade estivesse corroborado por tal milagre insigne. Que há de maior que isso, para ser prometido pelo Salvador, para ser ensinado pele Espírito? Nada mais digno da grandeza de Deus do que tal objeto da divina promessa e do divino ensinamento!