São João da Cruz — A Subida do Monte Carmelo
Tradução das Carmelitas Descalças do Convento de Santa Teresa do Rio de Janeiro
LIVRO SEGUNDO
Trata do meio próximo para alcançar a união com Deus, que é a fé, e da segunda parte da Noite escura, isto é, da Noite do espírito contida na seguinte canção.
Canção II
Na escuridão,
Pela secreta escada, disfarçada,
Oh! ditosa ventura!
Na escuridão, velada,
Já minha casa estando sossegada.
CAPÍTULO I
1. A alma canta, nesta segunda canção, a ditosa ventura de haver despojado o espírito de todas as imperfeições e apetites de propriedades na coisas espirituais. Tanto maior foi a ventura, quanto mais . difícil é estabelecer a paz na parte superior a penetrar nesta obscuridade interior, que consiste na desnudez do espírito, em relação a todas as coisas sensíveis e espirituais, apoiando-se a alma unicamente na pura fé para se elevar até Deus. A fé aqui é comparada a uma «escada secreta», porque os seus diferentes graus e artigos são ocultos a todo sentido e entendimento. Obscurecida quanto à luz natural e racional, a alma sai assim dos seus próprios limites para subir esta escada divina da fé que se eleva e penetra até às profundezas de Deus. Por este motivo, acrescenta que saiu «disfarçada», isto é, durante a sua ascensão na fé, despojou a veste e maneira de ser natural para se revestir do divino e, graças a esse disfarce, escapou aos olhares do demônio, e a todo o temporal e racional, pois nada disto pode prejudicar a alma caminhando na fé. De tal maneira vai aqui escondida e encoberta e tão alheia a todos os enganos do demônio que verdadeiramente vai caminhando «na escuridão velada», isto é, sem ser vista pelo demônio, para quem os esplendores da fé são mais obscuros que as trevas.
2. Eis por que a alma, envolvida pelo véu da fé, caminha oculta ao demônio, como adiante demonstraremos. Pelo mesmo motivo diz ter saído «na escuridão, segura», pois adianta-se com muita segurança nos caminhos de Deus a alma venturosa que toma unicamente a fé por guia, libertando-se cie todas as concepções naturais e razões espirituais. Declara ainda haver atravessado esta noite espiritual «já sua casa estando sossegada», isto é, quando sua parte espiritual e racional estava em repouso. Em verdade, chegando ao estado da união divina, a alma goza de grande sossego em suas potências naturais e tem adormecidos os seus ímpetos e ânsias sensíveis na parte espiritual. Não diz aqui como na primeira noite do sentido: que saiu «em vivas ânsias», porque para caminhar na noite sensitiva e se despojar de todas as coisas sensíveis, necessitava das ânsias veementes de amor sensível; mas para pacificar a casa do espírito só se requer a negação de todas as potências, gostos e apetites espirituais em pura fé. Executado esse trabalho, entrega-se a alma ao Amado numa união de simplicidade e pureza e amor e semelhança.
3. Observemos ainda: ao falar na primeira canção, da parte sensitiva, a alma diz ter saído em uma «noite escura». Aqui, relativamente à parte espiritual, acrescenta: saiu «na escuridão», por serem as trevas muito mais profundas, nesta noite do espírito; assim a escuridão é mais sombria que a noite; por mais escura seja a noite, todavia nela algo se distingue, enquanto na escuridão nada se vê. Assim, na noite do sentido a alma goza de certa claridade, pois ainda lhe resta alguma luz do entendimento e da razão que não estão cegos; mas na noite do espírito, que é a fé, a alma permanece na privação de toda luz, seja intelectual, seja sensível. Por isso canta, nesta canção, que caminha «na escuridão, segura», — segurança possuída na primeira noite. É certo, a alma quanto menos age em virtude da própria habilidade, mais segura vai, porque anda mais na fé. É o que irei explicando mais por extenso neste segundo livro; ao devoto leitor peço benévola atenção, porque mui importantes coisas se dirão aqui para o verdadeiro espírito. Embora pareçam um tanto obscuras, de tal modo se esclarecem mutuamente que, segundo creio, serão bem entendidas.