São João da Cruz — A Subida do Monte Carmelo — Livro 1 Cap. 2
CAPÍTULO II Explicação do que é a noite escura pela qual passa a alma para alcançar a união divina.
EM UMA NOITE ESCURA
1. A purificação que leva a alma à união com Deus pode receber a denominação de noite por três razões. A primeira, quanto ao ponto de partida, pois, renunciando a tudo o que possuía, a alma priva-se do apetite de todas as coisas do mundo, pela negação delas. Ora, isto, sem dúvida, constitui uma noite para todos os sentidos e todos os apetites do homem. A segunda razão, quanto à via a tomar para atingir o estado da união. Esta via é a fé, noite verdadeiramente escura para o entendimento. Enfim, a terceira razão se refere ao termo ao qual a alma se destina, — termo que é Deus, (ser incompreensível e infinitamente acima das nossas faculdades — NT: palavras tomadas da “edição príncipe”) e que, por isso mesmo, pode ser denominado uma noite escura para a alma nesta vida. Estas três noites hão de passar pela alma, ou melhor, por estas três noites há de passar a alma a fim de chegar à divina união.
2. No Livro de Tobias são elas figuradas pelas três noites que, em obediência ao Anjo, o jovem Tobias deixou passar antes de se unir à esposa. O Anjo Rafael ordenou-lhe que queimasse, durante a primeira noite, o coração do peixe, símbolo de um coração afeiçoado e preso às coisas criadas. A fim de começar a elevar-se a Deus deve-se, desde o início, purificar o coração no fogo do amo» divino e aí deixar consumir-se tudo o que é criatura. Esta purificação põe em fuga o demônio que tem poder sobre a alma apegada às coisas temporais e corporais.
3. Na segunda noite o Anjo disse a Tobias que seria admitido na companhia dos santos Patriarcas, que são os Pais da fé. A alma, do mesmo modo, após passar a primeira noite figurada pela privação de todos os objetos sensíveis, logo penetra na segunda noite. Aí repousa na solidão da fé que exclui, não a caridade, mas todas as notícias do entendimento; pois, como adiante diremos, a fé não cai sob os sentidos.
4. Afinal, durante a terceira noite, foi prometida a Tobias a bênção. Esta bênção é o próprio Deus que, pela segunda noite — a da fé — se comunica à alma de forma tão secreta e íntima, que se torna uma outra noite para ela, E, como veremos depois, esta última comunicação se realiza numa obscuridade mais profunda que a das outras duas noites. Passada esta terceira noite, — que é quando se acaba de fazer a comunicação de Deus ao espírito, ordinariamente em grande treva para a alma, — logo se segue a união com a esposa, que é a Sabedoria de Deus. O Anjo disse a Tobias que após a terceira noite se unisse com a esposa no temor do Senhor, para significar que quando o temor é perfeito o amor divino também o é, e a transformação da alma em Deus por amor logo se opera.
5. Para compreensão, vamos explicar com clareza cada uma dessas noites; observamos, porém, que as três são uma só noite dividida em três partes. A primeira noite — a dos sentidos — pode ser comparada ao crepúsculo: momento em que já não mais se distinguem os objetos entre si. A segunda noite — a da fé — assemelha-se à meia-noite, quando a obscuridade é total. A terceira, finalmente, comparada ao fim da noite, e que dissemos ser o próprio Deus, precede imediatamente a luz do dia.