Margarida Porete — O Espelho das Almas Simples Excertos de "Le Miroir des âmes simples et anéanties et qui seulement demeurent en vouloir et désir d'amour", traduzidos por Yara Azeredo Marino e Elisabete Abreu
A elevadíssima senhorita de Paz, ela que vive da vida gloriosa, ou melhor: da própria glória que se encontra somente no paraíso: realmente, o paraíso não é outra coisa a não ser ver Deus; e é por isso que o ladrão foi para o paraíso no momento em que sua alma deixou seu corpo; mesmo que Jesus Cristo, o Filho de Deus, não tivesse subido ao céu antes da Ascensão, ele foi, na própria Sexta-Feira Santa, para o paraíso. Como isso pode acontecer? É necessário que tenha sido assim, pois Jesus Cristo lhe prometera, e é então verdade que ele para lá seguiu no mesmo dia: isso aconteceu porque ele viu Deus, foi ao paraíso e o possuiu; pois o paraíso não é outra coisa a não ser ver Deus. E alguém aí se encontra em verdade na medida em que se desliga dele mesmo; e isso, não gloriosamente — pois, para essa criatura, seu corpo é muito grosseiro — mas divinamente pois, em seu interior, ela está perfeitamente liberta de todas as criaturas; é por isso que ela vive da glória, sem intermediário, e está no paraíso sem lá estar.
Procurai o sentido oculto dessas palavras caso desejeis compreendê-las; senão, compreendereis mal. Realmente elas se mostrarão e parecerão um tanto contraditórias àquele que for até o âmago desse sentido oculto. Mas o que é simples parecer não é a verdade: não há nada mais do que a verdade, ela própria, e nenhuma outra.
Mas em que pensava então a alma que escreveu este livro, querendo que encontremos Deus nela para viver o mesmo que ela diria? Parece que ela quis se vingar, isto é, que as criaturas mendigassem junto de outras criaturas como ela própria o fez!
A alma que escreveu este livro: certamente, convém fazê-lo antes que se chegue ao estado de liberdade, estou convencida disso. E, no entanto, eu era tão néscia quando escrevi este livro, ou melhor, quando o amor o fez por mim conforme meu pedido, que valorizava alguma coisa que não pudesse ser feita, pensada ou dita, exatamente como alguém que quisesse encerrar o mar no seu olho, erguer o mundo na ponta de um junco ou iluminar o sol com uma lanterna ou uma tocha. Sim, eu eta ainda muito néscia.
Quando impunha o que não se podia dizer, e me atrapalhava com essas palavras a escrever. Mas assim segui meu rumo e cheguei para meu socorro ao mais alto grau do estado do qual falamos, que está na perfeição, quando a alma permanece em puro nada e sem pensamento, e não antes.