Jean Daniélou — Platonismo e Teologia Mística
Original (em francês, no nosso site): II — La mystique du baptême
A Mística do Batismo
A expressão mais corrente para designar a entrada na via espiritual é sob diversas formas, aquela de separação do mal ou do erro: apostasis, allotriosis, anakoresis. Figurada nas primeiras linas da “Vida de Moisés” pela morte das filhas dos hebreus, que simbolizam a vida sensual. Nesta passagem surpreende a ênfase dada ao livre arbítrio, nesta démarche: “O nascimento espiritual é o resultado de uma escolha livre e somos assim em certo sentido nosso próprios pais, nos criando a nós mesmos tais como queremos ser e nos moldando por nossa vontade segundo o modelo que escolhemos”. Lendo essa passagem, se tem o sentimento que a conversão (metanoia) é antes de tudo uma obra da liberdade e o papel da graça nem aparece. Este acento é característico de Orígenes, e se explica em parte como uma reação contra o determinismo gnóstico.
Todavia, junto com esta ênfase na liberdade, encontramos outra diferente, onde a ação da liberdade só é possível porque o Verbo de Deus se uniu à humanidade e a deificou. Logo, antes da liberdade encontra-se a graça. E o papel da liberdade é abrir-se a ela. Toda a mística de Gregório é assim comandada por uma teologia do Logos e de sua união à humanidade. A união (anakrasis) de cada alma com o Logos nada mais é que um aspecto da realidade primeira e anterior que é a união do Verbo com a natureza humana na encarnação. Paulo Apostolo afirma que a união de dois na unidade de um só corpo é o grande mistério da união (henosis) do Cristo e da Igreja… Razão pela qual a esposa, no Cântico dos Cânticos, denomina “leito” a união (koinonia) com a divindade.
A Esposa é por vezes a alma individual e por vezes a Igreja, que é mediadora entre o Verbo e as “jovens” que figuram as almas. Vê-se como Gregório representa as vida espiritual como totalmente dependente da vida divina possuída pela Igreja que a comunica pelos sacramentos. Neste caminho ele se coloca dentro da tradição oriental, prenunciando Photice e Nicolas Cabasilas. Os sacramentos têm um papel decisivo a começar pelo batismo que só tem sentido se a alma renuncia efetivamente a seus vícios (união da liberdade com os sacramentos): “Deus nos dando o poder de tornar-se semelhante a Ele, nos deixou ser os artesãos (hergatas) da semelhança com Ele”. “Deus quis que façamos de nossa mobilidade mesma uma associado (synergon, vide synergia) de nossa ascensão ao céu”. “A virtude é sem mestre (adespoton), voluntária e livre de toda necessidade.
A vida espiritual é inteiramente representada como imersa na vida sacramental que a alimenta. Paralelismo entre as três vias e os três principais sacramentos: o batismo corresponde à primeira via sob seu duplo aspecto de purificação (katharsis) e de iluminação (photismos), a Confirmação corresponde à segunda via por seu duplo aspecto de obscurecimento do mundo visível (nephele) e de elevação para o mundo invisível (peristera), enfim a Eucaristia está em relação com a vida mística ao mesmo tempo como união (anakrasis) e como saída fora do mundo e de si (ekstasis). A vida sacramental é verdadeiramente concebida como uma “mistagogia”, como uma iniciação progressiva que conduz a alma até os picos da vida mística, até a “sóbria embriaguez”. Assim no comentário do salmo XXII (XXIII na Bíblia católica): “a sombra da morte” figura o batismo, o “cajado” e o “óleo” a confirmação, “a mesa preparada” e o “cálice enebriante” a eucaristia. Isto fica ainda mais claro se consideramos que o salmo era cantado na procissão que conduzia os batizados da piscina batismal para a mesa de comunhão.
A entrada na vida espiritual se apresenta como sendo ao mesmo tempo separação, despojamento, morte e agregação, iluminação, vivificação. Eis o duplo aspecto do mistério batismal da morte e da ressurreição com o Cristo. Gregório põe em relação a mortificação (voluntária) e a morte (sacramental): “Ressuscitei porque fui primeiramente enterrado com ele na morte pelo batismo. A ressurreição não poderia ter lugar se a mortificação (nekrotes) voluntária não tivesse precedido”.
Esse simbolismo batismal é explícito para algumas passagens bíblicas como relatado na Vida de Moisés. A travessia do Mar Vermelho, onde os egípcios, figura das paixões, afogam-se enquanto os judeus são liberados é expressamente relacionada ao batismo: “Todo homem compreende qual é este mistério da água na qual desce-se com todo o exército dos inimigos afogados na água. Quem aí não vê, com efeito, que o exército dos egípcios são as diversas paixões da alma ?” O despojamento ou desapego das paixões está em relação com o “mistério da água”, quer dizer o batismo, que figura na travessia do Mar Vermelho. E este mesmo mistério (sacramento) comunica a vida da alma: “Mas a água, pela virtude do cajado da fé e da Nuvem luminosa, se torna princípio vivificante para aqueles que aí buscam um refúgio”.