Mircea Eliade: Gnose e Gnosticismo

Em sua imensa obra sobre o mito e as tradições religiosas da humanidade, o historiador das religiões Mircea Eliade, legou inúmeras referências à tradição gnóstica, as quais serão inseridas nesta página, a começar por esta definição constante do dicionário das religiões que elaborou com Ioan Couliano.

Breve apresentação de Mircea Eliade e Ioan Couliano

O gnosticismo é uma religião que se manifesta nos primórdios da era cristã, sob a forma de numerosas correntes separadas que divergem por vezes entre si. É típico do gnosticismo utilizar dois mitos pertencentes na maior parte das vezes ao dualismo mitigado: o da mulher-Trickster, a deusa celeste Sofia que causa este ou aquele desastre ou inconveniente que terá como consequência a criação do mundo; e o de um Trickster macho, aborto de Sofia, que fabrica o mundo a partir, quer de uma substância ignóbil chamada «água» (Gen. 1,6), quer de detritos ou sonhos vindos lá do alto, do verdadeiro Deus. O demiurgo do mundo identifica-se em geral ao Deus do Antigo Testamento. Ele só não é francamente mau em algumas das passagens; ele é ignorante e orgulhoso, «louco», numa série de textos em língua copra que figuram entre as coleções de papiros gnósticos tendo a mais importante sido encontrada em Evangelho de Tomé no Alto Egipto, em 1945. Nos testemunhos resultantes da gnose de Valentino (fl. 140-150), o demiurgo ignorante arrepende-se e desculpa-se-lhe o facto de ter criado o mundo.

No panorama das ideias da época, o gnosticismo é revolucionário ao contradizer os dois princípios enunciados quer pela Bíblia quer por Platão: o princípio da inteligência ecossistêmica, segundo o qual a criação do mundo teve uma causa inteligente e bem intencionada, e o princípio antrópico, que afirma que este mundo foi criado pelo tipo de ser humano que aqui se encontra e que este ser humano foi criado por este mundo. Pelo contrário, o gnosticismo afirma que o demiurgo do mundo é ignorante, que o mundo é, por consequência, mau, e que o homem é superior ao mundo por possuir uma centelha do espírito do Pai distante e bom das gerações divinas. Evadir-se do cosmos será então o objetivo do gnóstico.

O gnosticismo utiliza a maior parte das vezes conceitos cristãos e o seu salvador chama-se na maior parte dos casos Jesus Cristo. Ele tem a função de revelar ao crente a existência da centelha de espírito presente na sua alma, gnose eterna que lhe permitirá regressar à sua origem hipercósmica. Jesus Cristo não tem, em geral, corpo físico (cristologia doceta) e logo, não pode realmente sofrer e morrer na cruz. As interpretações variam enormemente, mas em determinados casos é outro o crucificado (Simão de Cirene) e o verdadeiro salvador fica a rir-se à sombra da cruz. Este sorriso trocista de Cristo, segundo o demiurgo e seus acólitos, representa sem dúvida um traço que não se liga com os Evangelhos.
Verbete do Dicionário das Religiões, Mircea Eliade e Ioan Couliano. Dom Quixote, Portugal.