Merton Vida Contemplativa

THOMAS MERTON — ASCENSÃO PARA A VERDADE

A RAZÃO NA VIDA CONTEMPLATIVA
São João da Cruz começa a Subida do Monte Carmelo afirmando que a alma não poderá chegar à união com Deus sem entrar nas “trevas” com respeito a tudo que possa ser conhecido e desejado tanto pelos sentidos como pela inteligência e a vontade. Quer isto dizer que em certo sentido a fé e a contemplação “escurecem” e “cegam” a razão. Nenhum conceito claro e inteligível de Deus pode delimitar o seu Ser como Ele é realmente em si mesmo. A fé, levando o homem a um nível que está além da sua inteligência finita e “escura”, mas S. João da Cruz admite que ela não é jamais contrária à razão.

Mas, infelizmente, muitos leitores dos místicos procedem dessas premissas, à falsa conclusão de que a razão não tem lugar na vida mística. Basear nesta posição anti-racional uma doutrina ascética, é um verdadeiro suicídio espiritual. É verdade que a razão sozinha não pode fazer a ninguém santo, e que as virtudes cristãs devem operar em nível mais elevado do que as virtudes naturalmente adquiridas de um filósofo pagão. O santo é aquele que nasceu não do sangue nem na carne, nem da vontade do homem, mas de Deus. (Jo 1,13). Entretanto, Cristo, a Luz do mundo, que ilumina cada homem, dá-nos uma participação natural na Luz Divina: a razão humana. Não é sem motivo que Deus nos deu a razão. Ela tem um papel a desempenhar na vida sobrenatural. Deus ordenou de tal modo as coisas, que não podemos normalmente chegar à santidade sem fazer uso dela. Este é o ensino de S. João da Cruz.

Para o carmelita espanhol é lei fundamental da vida espiritual que Deus, suposta a ajuda da graça, quer que nos santifiquemos pelo uso de nossas faculdades naturais postas ao seu serviço. A graça não destrói a natureza, mas a eleva e consagra a Deus. Os homens não se tornam santos deixando de ser homens. Não se atinge a união mística através de uma separação entre a alma e o corpo, na vã tentativa de viver como anjos. É, aliás, óbvio que o nosso teólogo jamais usou o aforismo “a graça constrói sobre a natureza”, para defender uma espiritualidade fácil e materialística. A razão deve servir-nos na luta pela perfeição. Só que não pode lutar com as suas próprias normas. Ela não chefia, ela está alistada ao serviço da fé. Temos de refletir nas consequências morais da fé, temos de usar a mente para conhecer e guardar os mandamentos e conselhos de Deus.

Sublinhando a importância da razão na vida mística, o santo Carmelita estabelece, em alguns capítulos da Subida do Monte Carmelo , os contrastes entre duas espécies de mística. De um lado há o caminho estreito da União Transformante, o caminho da “Noite”, do nada, que é pura fé. Genuína mística cristã, que é desenvolvimento direto da vida da graça santificante, das virtudes teologais e dos dons do Espírito Santo, de outro lado, há uma espécie de mística que não é exatamente falsa, pois abunda em experiências que podem ser autenticamente sobrenaturais, mas que é um desvio do reto caminho para a santidade e a união divina. Essa mística floresce em visões e revelações, em epifanias e sinais extraordinários. S. João não nega que Deus muitas vezes se comunica desta maneira com os seus santos. Mas ele insiste em que essas experiências incomuns não devem ser procuradas nem desejadas, já que não estão em conexão essencial com a santidade nem podem manifestar-nos Deus como Ele é. Ha, mesmo, naquele apetite de visões o grande perigo de perder o caminho que leva a Deus, a fé perfeita.

É aqui que aparece a razão. Sua função principal na vida contemplativa, segundo S. João da Cruz, é resguardar o contemplativo de sair da estrada real da divina união, o caminho da fé. Um dos característicos mais notáveis da ascética joanina é que ela exige o constante crivo das experiências espirituais e a rejeição de inspirações situadas fora do reino da pura fé. O instrumento desta ascese interior não é outro senão a inata luz da razão. A razão, agindo ao serviço da fé, deve inquirir, pesar e julgar as nossas aspirações mas íntimas e espirituais. Ela deve examinar com inexorável objetividade tudo que se nos apresenta como um impulso sobrenatural. Deve provar cada voz interior, mergulhar as nossas “luzes” mais puras no negro oceano da fé. O grande paradoxo desta doutrina é que o ascetismo da “noite” não pode ser posto em prática sem a luz da razão. É pela luz da razão que navegamos através da noite da fé.

Pode-se comparar a jornada da alma para a união mística, pela estrada da pura fé, à viagem de um carro numa estrada sem luzes. O único recurso do condutor para guardar a estrada é usar os seus faróis. É esta a função da razão na vida mística. O caminho da fé é necessariamente escuro e nós viajamos de noite. Nossa razão, todavia, penetra nas trevas o bastante para mostrar-nos um pouco da estrada em frente. É pela luz da razão que interpretamos a sinalização ao longo do caminho.

Os que não compreendem bem a S. João imaginam que a via do Nada é guiar de noite, sem faróis. Isto é uma perigosa incompreensão. S. João critica severamente os que persistem em querer de Deus sinais do gênero de visões, ou outras experiências extraordinárias. E ele explica o motivo:

“Embora Deus possa responder, este método não é bom nem agradável a Deus. É feito mais para desagradar-Lhe… A razão é que não é lícito « nenhuma criatura passar os limites que Deus ordenou por seu governo na ordem da natureza. No governo do homem, Ele pôs limites racionais e naturais e por este motivo é ilícito desejar ultrapassá-los”.

Em outro lugar, ele repete a mesma coisa com maior clareza:

“Com respeito a divinas visões, revelações e locuções, Deus não costuma revelá-los, porque Ele é sempre desejoso de que os homens façam tanto quanto possível o uso da sua razão”.

Em outras palavras, os obstáculos encontrados no caminho da contemplação e da santidade devem ser removidos não por milagre mas pelo senso comum guiado pela luz da fé e animado pelo poder da graça divina.

Com a sua ascética só aspira S. João a ordenar em paz o ser inteiro do homem, de modo que os sentidos se submetam à razão e esta, com tudo que há no homem, se consagre a Deus pela fé sobrenatural. A perfeição dessa ordem culmina quando o homem é capaz de amar a Deus, “de todo o coração, de toda a mente, e com toda a força”, em plena realização do primeiro mandamento. Corresponde isto à descrição que faz da santidade S. Tomás, ao afirmar que o homem alcança a relativa perfeição, quando nenhum obstáculo resta a impedi-lo de amar a Deus de todo o seu ser: ut ab affectu hominis exclitdatur omne illud quod impedit ne affectus mentis in Deum dirigatur”. Segundo o Doutor Angélico, deve o homem procurar amar a Deus com todo o seu poder (ex totó posse suo) e chegar a um estado em que tudo nele é ordenado para o amor de Deus. S. João da Cruz diz a mesma coisa: “A alma perfeita é totalmente amor. . . todas as suas ações são amor, e ela emprega as suas faculdades e poderes a amar”.

O místico carmelita atesta que é o resumo de toda a sua doutrina: “Nisto se acha tudo que o homem espiritual deve fazer e tudo que eu tenho a ensinar-lhe, a fim de poder atingir a Deus através da união da vontade. (Ele está falando o primeiro mandamento, amar a Deus de todo o coração). Com isto o homem é mandado empregar todas as faculdades, desejos e afetos de sua alma em Deus”. É perfeitamente claro que S. João só concebe a perfeição na união mística, para a qual a alma é preparada pela “noite escura” da purificação passiva.